29 Apr
29Apr

Um trote lento, de cavalo cansado, acordara o silêncio da noite. Embora assustada, Carolina aguçou o ouvido para escutar o barulho dos cascos que chegava da rua. Todo o seu ser estremecia sob o impacto das palavras sussurradas no quarto ao lado e que as velhas taipas de madeira não conseguiam filtrar, porque incapazes de isolar qualquer som.   

- Escuta, João! Olha… lá vem ele! - dizia Dolores, baixinho, incutindo à situação um grande mistério. 

- Cala-te, mulher! Deixa-me dormir. Quem lá vai, lá vai! - retorquia o marido, um tanto arreliado. 

- Aquele tipo é estranho! Não achas, querido? – insistia Dolores. Perdera o sono e exigia do esposo maior atenção. 

- Dolores, por favor!… Vamos dormir, mulher! Já se sabe que, de tempos-a-tempos, ele passa por aqui... 


Ao escutar os sussurros dos pais, do outro lado da fina divisória, a pele arrepiara-se no corpinho da mocinha que logo imaginou um cenário tenebroso, como aqueles que contava Enid Blyton em As Aventuras dos Cinco - pequenos livros de bolso que costumava requisitar na biblioteca da escola. Aconchegou-se um pouco mais entre as irmãs que, alheadas pelo cansaço, dormiam tranquilamente na mesma cama. Tapou a cabeça com os cobertores, fechou os olhos e tentou dormir, mas o nervosismo e a curiosidade fizeram-na saltar apressadamente do leito, passando por cima da cabeça de Joana, a irmã mais velha, que incomodada resmungou algumas ameaças… 

- Raios te partam, rapariga! Ou paras quieta ou levas um estalo!  

- dizia meio estremunhada, esfregando os olhos  

- Vê lá se o cavaleiro da noite te leva com ele!...  

Mas Carolina não conseguia sossegar. Precisava de ver a misteriosa figura com os próprios olhos. 

Seria um lobisomem? 

Uma alma penada, talvez!… 

Já muitas vezes escutara as mulheres que lavavam a roupa no tanque da aldeia expressar essa opinião. 

Por outro lado, o que seria exatamente uma alma penada?  

Pé ante pé, aproximou-se da pequena e única janela do aposento e espreitou a medo, lá para fora. O som dos cascos do cavalo na calçada percebia-se agora mais nítido, denunciando que estariam já muito próximos… 

Troc… Troc… Troc…  

Indagou, qual espia, o pedaço de rua à sua frente, logo recuando para não ser vista. 

De repente, o barulho estancou e outros ruídos cortaram o silêncio da noite.  

Um cão uivou como lobo acossado.  

Um gato miou eriçado, seguido pelo pio da mochela que se encontrava escondida nas ruínas do velho canastro, logo ali ao lado.  

Quis regressar ao leito, mas os pés estavam presos ao chão. Um grito abafado soltara-se-lhe na garganta, mas ninguém a escutou. Com os olhos rasos de água, soluçou horrorizada. Lá fora, cavalo e cavaleiro descansavam da longa e dura jornada. A certa altura, o homem endireitou-se na garupa e elevou o olhar em direção à janela por onde a curiosidade espreitava. Levantou a mão e acenou ligeiramente, levando a garota a recuar temerosa. No momento seguinte, reiniciava a marcha e seguia o seu destino num ritmado cambalear em cima da montada. Dois olhos curiosos rasgavam a noite, perseguindo o estranho vulto até aquele desaparecer por completo. 

… 

O sol acordou esplendoroso pela manhã, mas o vento soprava forte, varrendo violentamente as folhas do chão. 

As colheitas estavam feitas e as pessoas davam agora um pouco de relaxe às ânsias do corpo. 

Não obstante, as aulas já tinham começado e Maria Carolina dirigia-se apressada para o largo da Igreja, onde diariamente apanhava o transporte escolar - uma pequena carrinha de caixa fechada com o nome da instituição gravada nas suas laterais: ESCOLA PREPARATÓRIA JOÃO RODRIGUES CABRILHO - Castro Daire. Era a sua escola, um edifício novo que ela quase inaugurara, pois não teria mais que dois anos em funcionamento. 

Era o Ano Letivo de 1973/74. 

Grandes acontecimentos se avizinhavam. 

Carolina frequentava o 1º Ano do Ensino Preparatório num edifício novo, com instalações de vanguarda para o tempo, e que tinha um ginásio fabuloso, onde se praticavam vários desportos: Basquetebol, Handebol, Futsal, Ténis de Mesa, entre outros. Sem descurar a Ginástica que obrigava os alunos a usarem um uniforme que ela adorava, e que se constituía por uma saia calção azul-marinho e um polo de manga curta, branco, com as iniciais do nome do aluno bordadas no pequeno bolso do lado esquerdo, bem juntinho ao coração. E ainda, sapatilhas e meias brancas. Ai de quem se apresentasse nas aulas de ginástica com o uniforme sujo ou desalinhado! 

Carolina seguia a passo largo quando, a certa altura, surgiu ao seu lado um cavaleiro de capa preta a esvoaçar ao vento, chapéu de abas largas enterrado na cabeça e um palito no canto da boca, galopando em trote ligeiro. Por incrível que pareça, não tivera medo nem receio de o olhar diretamente nos olhos. O homem sorriu para ela, mostrando uma boca malcuidada, lábios escurecidos e dentes tortos e amarelecidos, talvez pelo excessivo consumo de álcool e tabaco. A tez era escura, quem sabe, queimada pelo sol de verão e pelo vento agreste dos dias de inverno. Cavalo e cavaleiro continuaram o seu caminho e Carolina seguiu atrás, pois dirigia-se na mesma direção. A dado momento, numa parte mais estreita da rua, o homem atirou algo para o chão. Carolina aproximou-se e ficou algum tempo a olhar para o pequeno objeto. Tratava-se de uma caixinha redonda, de cor azul, em metal, da qual emanava um cheiro suave e muito agradável. Ainda hesitou em tocar-lhe, mas como sempre acontecia, vencera-a a curiosidade que não sabia conter. Pegou no objeto e abriu-o, libertando do seu interior um aroma perfumado ainda mais intenso. A caixa continha restos de um creme branco e macio que logo esfregou numa das mãos, adorando a sensação. Sem o esperar, tivera, nessa manhã, o seu primeiro contacto com uma caixinha de creme Nivea. 

Quanto ao cavaleiro misterioso… 

Aníbal saía às segundas-feiras pela manhã, montado no seu cavalo preto e percorria a trote as muitas aldeias do seu concelho - Castro Daire -, alargando, por vezes, os horizontes a nível distrital, o que o levava a passar semanas inteiras longe da família, não admirando, por isso, que tanto a mulher como os filhos demonstrassem alguma revolta e carência afetiva. Aníbal exercia a profissão de capador – ou castrador – de animais, na sua maioria porcos. 

Em tempos de extrema pobreza, ninguém conhecia ao certo os lugares onde pernoitava, mas sabia-se ser raro o dia em que não bebesse em demasia, dormindo ao relento sob o aconchego da bebida, dos cigarros e do seu fiel cavalo. 

Consta que mesmo ‘encharcado’ até às orelhas, jamais caíra da garupa do animal, segurando-se cambaleante no seu dorso como se fosse a coisa mais natural do mundo. 

Homem de parcas palavras, de semblante duro e pouco afetuoso, Aníbal Capador era um tipo mal-encarado e temido pelas crianças das aldeias, que usavam a sua imagem para se atemorizar umas às outras. 

- Cuidado que lá vem o Capador! - diziam uns. 

- Vê lá se te apanha e te mete no saco! - gritavam outros. 

- Ele vai é capar-vos a todos! - proferia um ou outro velhote de sorriso matreiro, para assustar os miúdos. 

Também Carolina crescera a ouvir falar de tal figura e sempre de modo depreciativo. Percebia agora que o cavaleiro da noite era um homem como os outros e que não fazia mal a ninguém. A única coisa que lhe interessava era cuidar da sua vida. Não podia haver crueldade naquele pobre coração, pois apreendera-lhe bondade no dia em que a fitara com o olhar. Era um olhar dócil, quase terno. Com certeza, o olhar doce e terno de que privava a família por tantas e demoradas ausências. 

… 

Aníbal Capador não tivera um fim comum. Certa noite, quando regressava a casa da sua longa jornada e completamente embriagado, sentira necessidade de descer da montada para ‘esvaziar’ a bexiga e descansar um pouco, escolhendo para isso, a berma de um pinhal junto à estrada. Prendera o cavalo a um pinheiro e fizera do coberto vegetal o seu leito, elegendo como companhia o maço de tabaco. Adormeceu de cigarro aceso, ateando o fogo às roupas e à caruma seca. 

Apavorado pelo fogo, o cavalo debatera-se até rebentar a corda que o prendia à árvore e fugira em direção a casa, onde, diz-se, terá chegado apenas com a sela na garupa, dando o alarme aos familiares. 

… 

A vida tem destas coisas. Aníbal Capador enfrentara, com seu fiel cavalo, verões escaldantes e invernos terrivelmente hostis. Percorrera vezes sem conta os mesmos trilhos de solidão e sempre regressara a casa são e salvo. Não temera a obscuridade da noite nem os perigos que ela encerrava. Não se deixara intimidar por ladrões nem pelos companheiros de infortúnio que brigavam nas tabernas que frequentava. Quisera o destino que viesse a perecer pelas chamas num fim terrivelmente cruel, e tão só como só caminhara pela vida. 

In "PEQUENOS CONTOS - TRECHOS DE REALIDADES", Chiado Books, 2020 (texto editado). 

Imagem: 

https://soundcloud.com/vito.../cavaleiro-em-noite-de-eclipse 

História verídica – Aníbal capador, natural da Freguesia de São Joaninho – concelho de Castro Daire.

Dulci Ferreira, a autora do texto

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