Fica! Deixa-te estar. Há paisagens incríveis para observar. Há belezas estonteantes em horizontes infindos que nos cativam o olhar. Sei que há motivos que te levam a partir, mas hoje, fica! Há uma história que te quero contar.
Não sei se sabes, mas sou mulher serrana, o meu espírito indomável não engana e tudo em meu redor se coaduna. Sou eu, assim, e sou feliz. Há sempre uma brisa que me acaricia a pele e um riso franco a soar nas enseadas das montanhas, eco do vento que tudo perpassa ao contornar as protuberâncias da existência. Sou eu, assim, e ainda amo esta brejeirice de menina que o tempo não alterou.
Já fui pastora. Lindas trovas inventei. Montes e vales eu galguei e a minha sede matei nas frescas águas das nascentes que brotavam nas ladeiras dos caminhos. Carreiros de cabras trilhei. Nas eiras, ao alho saltei, às escondidas brinquei, ao “mata” joguei. Não tinha computador nem consola. Não havia telemóveis nem conversas de chat, como hoje e que tanto nos aproximam.
Era eu, assim… destemida, querendo alcançar o infinito, como águia que ao mais alto sobe, todavia, sem esquecer onde fez o ninho. Também aos pinheiros subi. As vestes rasguei e os joelhos feri ao romper por entre as fragas dos rios, exatamente onde te namorei. Urzes, malmequeres e outras flores silvestres, colhi. Cabritos e borregos ajudei a nascer. Transportei-os no colo. Do leite das cabras bebi e, apesar da difícil tarefa de manter os passos firmes na dura caminhada, estas são ainda as mais belas imagens que de mim guardei.
Há um lado meu que conserva esse tempo leve, mas o outro… ai, o outro… Esse carrega o peso deste mundo, doente e cruel. Há tanta coisa que me entristece! As lutas que não consigo vencer. A maldade das pessoas que se pensam superiores.
Saber que há milhões de crianças a definhar lentamente por falta de nutrição. Tu sabes o quanto isso me afeta! Que minhas lágrimas são o fruto destas tristes realidades que todos, de algum modo, sustemos nas próprias mãos. Ainda bem que para me alentar existes Tu, quando me embalas no colo e cantas.
É assim que renasce em mim a esperança de um amanhã promissor, sem guerras e vírus, e atitudes que tolhem e angustiam. Só Tu compreendes os meus estados de alma, as minhas desesperanças, os medos e anseios que me assolam noite adentro.
Como podes pensar que em algum momento desta vida poderia substituir-Te, deixar-te partir sem tentar? Ó, como te enganas!
Fica, por favor! Ainda há uma história que te quero contar…
Dulcí Ferreira - Castro Daire/20-05-2024
Dulcí Ferreira, a autora desta prosa.