19 Aug
19Aug

Século XX - Anos 60.  

Toninho, garoto destemido e audaz que não cumpria mais de dez anos de idade por aquela altura, corria desenfreado pelas ruas desertas da aldeia de São Joaninho em noite tenebrosa e fria, uma das mais geladas e obscuras daquela agreste estação invernosa. 

-Tia Laura! Tia Laura! Venha rápido ca minha mãe já tá cas dores!  

–gritava o pequeno, batendo forte e insistentemente na porta da casa da parteira do povo, a altas horas da madrugada. 

-Calma, filho! Já vou! Corre p´ra casa, diz à tua mãe que se aquiete e ao teu pai que vá pondo uma panela com água ao lume e que prepare também umas toalhas ou panos limpos. Eu vou já!   

-Tá bem, tá bem, Tia Laura! Mas num demore, por favor! 

E tantas outras noites se repetiram da mesma forma. Tantas tardes e manhãs.  Tantos momentos de angústia e ansiedade, orando e rezando para que aquela fosse ‘mais’ uma hora pequenina; que a criança nascesse perfeita e que nada de mal acontecesse ao nado e à mãe durante essa hora radiosa de trazer mais um ser humano ao mundo. 

… 

Laura, nome de sonância doce, mas vitoriosa, nasceu na aldeia de S. Joaninho, concelho de Castro Daire, a 23 de agosto de 1923, numa família numerosa e de condição modesta, mas algo abastada. Seu pai, reconhecidamente mestre-de-obras na construção de edifícios em cantaria - o mestre João Pedreiro -, possuía alguns terrenos e uma junta de bois, o que naqueles tempos - finais do século XIX, inícios do século XX - lhe conferia um certo estatuto social. 

Quisera o destino que praticamente tudo perdesse ao ficar fiador de uma dívida contraída por um familiar da aldeia de Cujó, em quem muito confiava, mas que, vindo a falecer precocemente, a mesma dívida lhe largara nas mãos. Nem a viúva nem os herdeiros diretos quiseram assumir tal responsabilidade, levando João Ribeiro a ter de se desfazer dos seus bens para cumprir com o pagamento dos juros de um encargo que crescia a cada mês, levando-o à ruína total e à quase loucura. Homem íntegro e escrupuloso, o mestre percebera tarde demais que caíra nas mãos de um agiota e que a maldita dívida jamais teria fim. 

De um momento para o outro, viu-se a braços com a dificuldade de alimentar a própria família - nove filhos, ele e a esposa -, vindo a atravessar tempos de grandes dificuldades e a cair numa depressão profunda que, associada a acontecimentos posteriores não menos terríveis, o levaria a um fim precoce. 

… 

Laura era a filha mais nova. 

Uma menina linda e meiga, inteligente e decidida. A sua simplicidade destacava-se na maneira terna de ser, sempre pronta a ajudar os outros e, acima de tudo, com uma enorme vontade de aprender. Frequentou o ensino até à terceira classe, um feito para os tempos que corriam, em que muito poucas crianças frequentavam a escola e em que a maioria da população era analfabeta. 

O seu destino passaria, segundo perspetivas de um dos irmãos mais velhos, marinheiro de profissão, pelo ensino superior. Laura era muito inteligente. Teria, pois, que ser alguém na vida. 

Quisera o mesmo destino que seu irmão viesse a sofrer um terrível desgosto ao ser traído por sua amada esposa que, na sua ausência de longos dias no mar, o substituiu no leito e sem nenhum pudor por outro homem. José Marinheiro, como era conhecido entre colegas e amigos, perdera o gosto pela vida, deixando-se definhar pela vergonha, pelo desamor e pela angústia até à morte, matando também os sonhos e as aspirações da pequena Laura que devido a múltiplas impossibilidades, se obrigara a abandonar os estudos. 

… 

Laura nasceu com o dom de dar vida.  Aos catorze anos, começou a desempenhar o papel de Parteira do Povo e várias gerações viriam a ver a luz do dia pelas suas delicadas mãos. Casou com um rapaz pobre, mas humilde, trabalhador e de grande caráter. Tivera seis filhos e um aborto espontâneo. Viria a perder um deles apenas com dois anos de vida, o que lhe causou um terrível desânimo e muitos problemas de saúde.  

A cada parto que assistia recebia, de uns, algum reconhecimento; de outros, apenas desprezo e desdém. Apesar disso, não dizia que não a ninguém, tudo fazendo por amor e solidariedade. Nunca esperara qualquer remuneração, mas caía-lhe bem a consideração e o respeito. 

A cada parturiente, dava o direito a um mês completo de resguardo, tratando da mãe e da criança. Lavava a roupa de toda a família durante esse mês de recuperação. 

É claro que a ideia era tratar apenas das roupas da mãe e da criança, mas, enfim… Com a ajuda das filhas mais velhas, tudo suportava com carinho e resignação, percebendo o abuso de algumas famílias que aproveitando a ocasião, juntavam todos os trapos sujos para lavar, tirando partido da sua boa vontade e simplicidade. 

Fosse de verão ou de inverno, a jorrar de suor ou a tiritar de frio, lá se obrigavam as filhas mais velhas e ela própria a desencardir peças de roupa tão sujas, que as deixavam com as mãos a sangrar de tão polidas pela dureza dos tecidos e das pedras do tanque da aldeia

Apesar da sua dádiva e desprendimento, Laura era invejada, criticada e de certa forma, explorada. Sentia isso na pele, mas tudo sofria em silêncio, apaziguando a revolta e educando os filhos segundo o preceito de que tudo deviam aceitar, porque era essa a vontade de Deus. 

A família e a religião foram sempre a base da sua força, fé e continuidade.  

Durante décadas, assistira a vários partos, chegando algumas famílias a constituir seis ou sete filhos e outras até mais. Nenhuma mãe ou criança perecera às suas mãos. 

Como forma de pagamento recebia, em alguns casos, o convite para a festa do batizado, mas apenas ela. A restante família era completamente desconsiderada, ato que lhe doía na alma. Contudo, não podia negar-se, visto, naqueles tempos, ser a ama (parteira) quem levava a criança à pia batismal. 

Sua função de “obstetra” terminara quando os filhos a convenceram de que já tinha cumprido a sua missão e que Deus lhe reconheceria as boas ações. Estava na hora de remeter essa responsabilidade às maternidades e aos profissionais de saúde.  

Várias doenças viriam a tomar conta da sua vida, suportando com paciência e resignação as dores da sua longa existência. Fizera as hóstias para a igreja durante mais de quarenta anos. Trabalhara nas terras, embora mais nas terras dos outros do que nas suas, por vezes em troca de alguma reciprocidade. E colhia bons frutos regados com o suor do seu rosto. 

Nunca maltratara ou desrespeitara ninguém.  

Em suas orações, sempre couberam todas as pessoas, de boa ou má índole, porque no santuário do seu coração nunca houvera lugar para sentimentos menores. 

 … 

Laura entregou a vida a Deus a 11 de dezembro de 2015, quase vésperas de Natal, com 92 anos muito sofridos, resultado de uma patologia clínica complicadíssima que se arrastou pelo tempo, tudo suportando com fé em Deus e Nossa Senhora da Lapa e de Fátima e em muitos outros santos, aliados ao carinho, amor e presença dos filhos e à sua enorme vontade de viver. 

Terminou os seus dias no Lar de Esperança e Bem-Estar da ACS São Joaninho, Castro Daire, deixando muitas saudades. 

Por pior que estivesse, nunca se queixava. Não pedia nada. Não incomodava. Na sua perspetiva, estava sempre tudo bem. Outros seriam prioridade, precisando mais da atenção e serviços das cuidadoras do que ela. 

… 

Laura era minha mãe. No dia em que faleceu, e ao vê-la agonizando de olhos fechados, com os braços abertos e o corpo abandonado no leito, como se dissesse: “Aqui estou, Senhor, pronta para ser carregada em Vossos braços e fazer a derradeira passagem…”, perguntei-lhe, com imensa dor na alma e no coração, o que podia fazer por ela. Num suspiro abafado, respondeu:  

Nada! 

Quando partiu, fiquei triste por um lado; por outro, senti uma paz inexplicável. Tentei prolongar-lhe a vida o mais que pude, como se a sua permanência entre nós dependesse da minha vontade. 

Não terei sido uma filha exemplar, mas tudo fiz para lhe dar uma vida boa e minimizar o seu sofrimento. Nunca a abandonei. Minha consciência estava tranquila.    

Dulci Ferreira, a autora deste texto

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.