Tarde de domingo!
Uma tarde pálida abrilhantada pela doce companhia do Senhor Sidónio.
Eram tantas as memórias que tinha guardadas desde a década noventa, quando este bom homem foi meu aluno na formação de adultos que senti uma vontade enorme de lhe fazer uma surpresa.
Fui encontrá-lo no conforto da lareira, olhando a televisão de olhar cativante, suspenso nos noventa e cinco anos que lhe debilitam os movimentos. Mas a lucidez, essa não sucumbiu ao peso das luas e com mãos trémulas desfolhou contas do rosário da sua vida. Uma vida peregrina no horizonte da serra.
Os jardins de urzes, carquejas, giestas... afloraram-lhe nas linhas do rosto e várias pétalas se soltaram da sua boca vindo cair no meu regaço.
-Senhor Sidónio, na história da sua vida, contou-me que foi sardinheiro...
Foto de um Sardinheiro
Não me deu tempo para continuar.
Encheu o peito de ar, olhou-me fixamente e começou a desenrolar o enorme novelo das teias que engrossam sua existência.
-Pois fui!
Carregava às costas dois caixotes de sardinha e ia vendê-las para as aldeias da serra. Aquele chão era todo meu.
-Sabemos que o dinheiro era escasso, senhor Sidónio...
-O dinheiro era pouco!
As pessoas pagavam-me como podiam! Ovos, milho...era quase uma troca, pois os tempos eram difíceis... mas, sabe, era um povo muito sério e honesto.
Eu chegava aqui a Vila Seca, deixava um caixote cheio de sardinha e os fregueses serviam-se...enquanto eu ia à Povoa do Montemuro, Cetos, Pereira, Faifa, Moção, Desfeita. Ribas... vender a outra caixa.
Aldeia de Vila Seca
-Como fazia para se fazer anunciar?
Se o senhor andava a pé o eco era esmagado nos seus passos...
-Eu andava quase sempre descalço, quer fosse verão, quer fosse inverno.
Quando chegava às aldeias lançava um foguete que rebentava no ar e logo as portas das casas se abriam para virem comprar a sardinha... havia casas que compravam uma sardinha para repartirem por três!
Era a fome, sabe, era a fome!...
-Sim, era a fome, mas alimentavam-se também com a alegria que brotava nas vossas veias...
-Andávamos sempre felizes, não nos lastimávamos...eu andava sempre com o meu realejo no bolso e espalhava música...olhe, fizeram-se muitos bailes nos largos e nuvens de poeira dançavam no espaço...
-Senhor Sidónio e as apostas que faziam, lembra-se?
-Se lembro!
Um dia, em Faifa, o Orlando Carneiro, daqui de Vila Seca, desafiou-me.
Disse-me que se eu conseguisse comer um quarteirão de sardinhas cruas, me pagaria cinquenta!
Comi-as enquanto o diabo esfregava um olho...e lá teve ele que pagar cinquenta sardinhas!.. Memórias resgatadas.
Lembranças estigmatizadas nas rugas do corpo. Saudades escritas no pó dos montes...hoje, habitados pelos passarinhos que cortam o silêncio e rasgam os céus...
O senhor Sidónio, a viver com sua neta Luísa, afastou-se da serra que já foi toda sua e das gentes que deixaram de ouvir o estrondo do foguete.
Os urzais murcharam na pele calejada dos pés.
As pedras dos trilhos choram no frio a saudade das carícias que lhe davam vida.
Os caixotes da sardinha aqueceram-no numa noite de inverno e guardam nas cinzas os suspiros adormecidos na sua casa em Ester.
O realejo beija-lhe a boca com ternura...
mas a musicalidade emudeceu, abafada pela boina que lhe aconchega a cabeça, cofre de tantos segredos e tantas memórias, sufocadas num feixe feito de glórias...
Celeste Almeida: Autora do Texto