18 Apr
18Apr

Tarde de domingo! 

Uma tarde pálida abrilhantada pela doce companhia do Senhor Sidónio. 

Eram tantas as memórias que tinha guardadas desde a década noventa, quando este bom homem foi meu aluno na formação de adultos que senti uma vontade enorme de lhe fazer uma surpresa. 

Fui encontrá-lo no conforto da lareira, olhando a televisão de olhar cativante, suspenso nos noventa e cinco anos que lhe debilitam os movimentos. Mas a lucidez, essa não sucumbiu ao peso das luas e com mãos trémulas desfolhou contas do rosário da sua vida. Uma vida peregrina no horizonte da serra. 

Os jardins de urzes, carquejas, giestas... afloraram-lhe nas linhas do rosto e várias pétalas se soltaram da sua boca vindo cair no meu regaço.  

-Senhor Sidónio, na história da sua vida, contou-me que foi sardinheiro...

Foto de um Sardinheiro

Não me deu tempo para continuar. 

Encheu o peito de ar, olhou-me fixamente e começou a desenrolar o enorme novelo das teias que engrossam sua existência. 

-Pois fui!  

Carregava às costas dois caixotes de sardinha e ia vendê-las para as aldeias da serra. Aquele chão era todo meu. 

-Sabemos que o dinheiro era escasso, senhor Sidónio... 

-O dinheiro era pouco!  

As pessoas pagavam-me como podiam! Ovos, milho...era quase uma troca, pois os tempos eram difíceis... mas, sabe, era um povo muito sério e honesto. 

Eu chegava aqui a Vila Seca, deixava um caixote cheio de sardinha e os fregueses serviam-se...enquanto eu ia à Povoa do Montemuro, Cetos, Pereira, Faifa, Moção, Desfeita. Ribas... vender a outra caixa.

Aldeia de Vila Seca

-Como fazia para se fazer anunciar? 

Se o senhor andava a pé o eco era esmagado nos seus passos... 

-Eu andava quase sempre descalço, quer fosse verão, quer fosse inverno.

Quando chegava às aldeias lançava um foguete que rebentava no ar e logo as portas das casas se abriam para virem comprar a sardinha... havia casas que compravam uma sardinha para repartirem por três! 

Era a fome, sabe, era a fome!...  

-Sim, era a fome, mas alimentavam-se também com a alegria que brotava nas vossas veias...  

-Andávamos sempre felizes, não nos lastimávamos...eu andava sempre com o meu realejo no bolso e espalhava música...olhe, fizeram-se muitos bailes nos largos e nuvens de poeira dançavam no espaço... 

-Senhor Sidónio e as apostas que faziam, lembra-se? 

-Se lembro!  

Um dia, em Faifa, o Orlando Carneiro, daqui de Vila Seca, desafiou-me. 

Disse-me que se eu conseguisse comer um quarteirão de sardinhas cruas, me pagaria cinquenta! 

Comi-as enquanto o diabo esfregava um olho...e lá teve ele que pagar cinquenta sardinhas!.. Memórias resgatadas. 

Lembranças estigmatizadas nas rugas do corpo. Saudades escritas no pó dos montes...hoje, habitados pelos passarinhos que cortam o silêncio e rasgam os céus... 

O senhor Sidónio, a viver com sua neta Luísa, afastou-se da serra que já foi toda sua e das gentes que deixaram de ouvir o estrondo do foguete.  

Os urzais murcharam na pele calejada dos pés.  

As pedras dos trilhos choram no frio a saudade das carícias que lhe davam vida.  

Os caixotes da sardinha aqueceram-no numa noite de inverno e guardam nas cinzas os suspiros adormecidos na sua casa em Ester.  

O realejo beija-lhe a boca com ternura...

 mas a musicalidade emudeceu, abafada pela boina que lhe aconchega a cabeça, cofre de tantos segredos e tantas memórias, sufocadas num feixe feito de glórias...

Celeste Almeida: Autora do Texto

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