Hoje, as ruas e a Capelinha estão assim!...
Outrora, que dia lindo, o da nossa aldeia! A nossa aldeia estava em festa. A festa da Nossa Senhora da Saúde. Tão linda era neste dia a minha aldeia! Logo pela manhã, a banda de música fazia a arruada. Começava no cimo do povo, no largo da capelinha e percorria todos os cantinhos com a fanfarra sempre a tocar.
Quando chegava à nossa casa, era paragem obrigatória, lembras-te meu pai? Tu com teu coração grande, tão grande que não cabia na aldeia e deixava pedacinhos de bondade por onde passasse, abrias a porta da adega onde já tinhas pão de ló feito pelas mãos sábias da mãe e queijo da serra e com tua voz que parecia um canto vindo dos céus, dizias:
Venham comer uma bucha para terem fôlego. Não deve ser fácil soprar nesses instrumentos tão grandes para nos darem música! Que maravilha ouvir-vos.
E eles, pousavam os instrumentos com muito cuidado e rapidamente metiam na boca um naco de bolo com queijo e bebiam um copito.
Que bom vinho, senhor João. O senhor tem boas castas!
A tua alegria, meu pai, sempre que elogiavam o fruto do teu trabalho, era contagiante, mas mais contagiante era o brilho dos teus olhos, sempre que estendias as mãos para dares com tanto amor o que tinhas! Eras um homem bom, talvez como haveria poucos. Tua bondade não foi esquecida por ninguém, mas aquele mendigo, ai aquele mendigo, nunca o apaguei da minha memória! Será que tu, meu pai, lhe falaste baixinho e o consolaste? Se é verdade, que apenas o corpo morre, que nosso espírito continua sua missão, então, tu acalmaste aquele mendigo que ajoelhado a teus pés chorava compulsivamente. Eu conheci alguns daqueles que percorriam a aldeia, com um saco de serapilheira na mão e mendigavam o pão! Estavam lá, pai, no teu velório a chorar! Alguns vestiam roupa tua, porque até a tua roupinha tu distribuias por eles! O povo diz das pessoas boas que "dão a camisa do corpo" e na verdade, tu davas tudo, davas até a camisa do corpo sem pensares que te poderia fazer falta! Eras assim, meu querido pai, um homem bom que sempre que fazia anos havia festa na aldeia.
E em nossa casa, naquela sala muito grande, os gritos alegres dos teus muitos netinhos, as correrias deles, as brincadeiras a saltarem em cima das camas , interrompiam a azáfama da mãe que naquele dia "não tinha mãos a medir"!
-Meninos, ide brincar lá para fora. Deixem-me trabalhar ou não querem comer a sopinha da avó?
-Queremos, avó, queremos! -gritavam logo os meus filhos que ainda hoje falam na sopada avó.
Vês pai! Sempre que começo a reviver o tempo, aquele tempo feliz, em que a família se juntava em nossa casa, perco-me nas lembranças e esqueço o que estava a fazer.
Eu hoje queria muito contar-te um segredo. Um segredo só meu, mas que todos os anos, neste dia 15 de agosto te venho dizer. Escuta, meu pai. Chega cá o teu ouvido para só tu ouvires.
Só tu, porque hoje o dia é teu.
Olha, sabes, pai, aquilo que combinámos naquele dia em que fomos ver o Mangualde jogar ? O adversário era o Académico de Viseu e tu disseste-me que...pois é, não posso dizer o que me disseste.
É um segredo, o meu segredo, o nosso segredo.
Um dia , aí no céu, onde tu vives em fraternidade com a mãe, a Adélia, o João e o Custódio, iremos todos brindar à festa na nossa aldeia, ao teu aniversário e baixinho, só eu e tu, brindaremos também ao nosso segredo.
É um segredo tão lindo, não é pai?
Agora, a festa na nossa aldeia vai continuar. Talvez a procissão já ande a abençoar as ruas da aldeia, mas há uma casa em que tudo é diferente.
Será que ainda tem as colchas nas janelas? Será que pétalas de rosas são lançadas do terraço em cima da Nossa Senhora da Saúde?
Celeste Almeida, a autora do texto.