05 Dec
05Dec

Nunca me cansarei de gritar ao mundo, o quão privilegiada fui vivendo o que vivi e, principalmente, ter partilhado o mesmo espaço e o mesmo tempo que os grandes mestres e as grandes mestras da oralidade 

- O Povo.  

Foi do Povo, das pessoas idosas do século passado, que trouxe os mais valiosos ensinamentos ancestrais, um legado que tem que constar dos valores culturais existentes no livro da sabedoria, a sabedoria que, tal como eles diziam, herdaram de Deus. 

Novembro, do ano de mil novecentos e setenta e cinco.  

O dia não recordo, no entanto, jamais esqueci o que aconteceu.  

Tinha caminhado debaixo de uma chuva torrencial. O vento agreste virou as varetas do sombreio e valeu-me a capucha que me cobria o corpo.  

Foram precisas algumas horas para ir de Ramires até à Escola de S. Cipriano buscar o chamado Diário de Frequência.

Aldeia de Ramires

Sem demoras, regressei a casa, na companhia de Deus, pedindo-Lhe em silêncio, que me aliviasse daquela terrível dor de cabeça! 

Chegada a casa, as minhas primeiras palavras foram: 

-Senhora Prazeres, não aguento a minha cabeça! Se estivesse em casa dos meus pais, teria uns comprimidos chamados Aspirina, mas aqui, nada tenho!  

- Vá tirar essas roupas encharcadas, senhora professora e venha aqui, ter comigo. Se esse seu mal foi causado por alguém, eu vou ajudá-la! A senhora fica boa num instante! 

Aquelas palavras causaram-me um arrepio. 

Como podia, aquela dor de cabeça, ser causada por alguém, se nenhuma vivalma me tocou...?  

Quando voltei à cozinha, já com roupas secas, a senhora Prazeres tinha uma tigela com água em cima do preguiceiro. Depois, pegou numa almotolia onde tinha azeite, deitou três gotinhas na água, fez o sinal da cruz à minha frente e orou, em voz alta: 


- Deus te viu, Deus te criou, Deus te livre de quem para ti mal olhou.  

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Virgem do pranto quebrai este quebranto.  

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, Ámen. 

Eu estava perplexa, pois nunca nos meus vinte anos tinha assistido a algo tão misterioso. 

O azeite depressa se espalhou na água.  

Eu bocejava, como quem não consegue segurar o sono.  

A senhora Prazeres bocejava de igual modo e algumas lágrimas lhe caíram no rosto.  

- Eu tinha razão, senhora professora. A senhora está carregada de quebranto. Não se aflija, porque vai ficar bem. Deus deixou tudo no mundo, o bem e o mal, mas o mal nunca vencerá. 

Em seguida, deitou fora a água da tigela, pôs outra, colocou três gotinhas de azeite e.…de repente se espalharam. 

Fez todo o ritual, novamente e só parou à quarta vez. 

- Até que enfim!  

A senhora já está limpa.  

Veja as gotinhas do azeite que pus agora.  

Estão fechadinhas, não se espalharam na água.  

Eu estava serena, tranquila, mas muito surpreendida. O meu bocejar diminuía à medida que as rezas eram feitas e parou definitivamente, quando as gotinhas do azeite ficaram suspensas na água. 

A minha curiosidade era do tamanho da minha fé. Sem qualquer dor, agradeci à senhora Piedade e perguntei-lhe: 

- Senhora Prazeres, que aconteceu?  

O que me fizeram?  

Ninguém me maltratou, creia!  

Foi, nesse dia, que fiquei a saber, a força que pode ter um simples olhar, o " olho gordo" como chamou a senhora Piedade. 

A partir daquele dia, em várias aldeias do Montemuro, Pimeirô, Bustelo da Lage, Moura Morta...fui curada por pessoas que sabiam rezar ao quebranto. Não só ao quebranto. mas também, rezavam a outros males que partilharei convosco.


Aldeia de Moura Morta

Perguntarão vocês: 

- Então, toda a dor de cabeça era quebranto?  

Minha resposta é não.  

Nem sempre o azeite se espalhava e, quando assim acontecia, pura e simplesmente, a reza não se fazia! 

Acredite quem quiser. A minha crença é tanta, que, ainda hoje, recorro às pessoas que herdaram este legado dos seus antepassados. 

Com estes meus escritos, o meu objetivo é preservar a Sabedoria Ancestral e não fazer dela uma religião, muito menos algo pré-estabelecido.  

O meu objetivo é divulgar os conhecimentos, as práticas, os rituais dos nossos antanhos, perpetuados nos rastros que deixaram na nossa história, a história que eu própria tive o privilégio de viver.

Celeste Almeida, a Autora do Texto

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