Nunca me cansarei de gritar ao mundo, o quão privilegiada fui vivendo o que vivi e, principalmente, ter partilhado o mesmo espaço e o mesmo tempo que os grandes mestres e as grandes mestras da oralidade
- O Povo.
Foi do Povo, das pessoas idosas do século passado, que trouxe os mais valiosos ensinamentos ancestrais, um legado que tem que constar dos valores culturais existentes no livro da sabedoria, a sabedoria que, tal como eles diziam, herdaram de Deus.
Novembro, do ano de mil novecentos e setenta e cinco.
O dia não recordo, no entanto, jamais esqueci o que aconteceu.
Tinha caminhado debaixo de uma chuva torrencial. O vento agreste virou as varetas do sombreio e valeu-me a capucha que me cobria o corpo.
Foram precisas algumas horas para ir de Ramires até à Escola de S. Cipriano buscar o chamado Diário de Frequência.
Aldeia de Ramires
Sem demoras, regressei a casa, na companhia de Deus, pedindo-Lhe em silêncio, que me aliviasse daquela terrível dor de cabeça!
Chegada a casa, as minhas primeiras palavras foram:
-Senhora Prazeres, não aguento a minha cabeça! Se estivesse em casa dos meus pais, teria uns comprimidos chamados Aspirina, mas aqui, nada tenho!
- Vá tirar essas roupas encharcadas, senhora professora e venha aqui, ter comigo. Se esse seu mal foi causado por alguém, eu vou ajudá-la! A senhora fica boa num instante!
Aquelas palavras causaram-me um arrepio.
Como podia, aquela dor de cabeça, ser causada por alguém, se nenhuma vivalma me tocou...?
Quando voltei à cozinha, já com roupas secas, a senhora Prazeres tinha uma tigela com água em cima do preguiceiro. Depois, pegou numa almotolia onde tinha azeite, deitou três gotinhas na água, fez o sinal da cruz à minha frente e orou, em voz alta:
- Deus te viu, Deus te criou, Deus te livre de quem para ti mal olhou.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Virgem do pranto quebrai este quebranto.
Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, Ámen.
Eu estava perplexa, pois nunca nos meus vinte anos tinha assistido a algo tão misterioso.
O azeite depressa se espalhou na água.
Eu bocejava, como quem não consegue segurar o sono.
A senhora Prazeres bocejava de igual modo e algumas lágrimas lhe caíram no rosto.
- Eu tinha razão, senhora professora. A senhora está carregada de quebranto. Não se aflija, porque vai ficar bem. Deus deixou tudo no mundo, o bem e o mal, mas o mal nunca vencerá.
Em seguida, deitou fora a água da tigela, pôs outra, colocou três gotinhas de azeite e.…de repente se espalharam.
Fez todo o ritual, novamente e só parou à quarta vez.
- Até que enfim!
A senhora já está limpa.
Veja as gotinhas do azeite que pus agora.
Estão fechadinhas, não se espalharam na água.
Eu estava serena, tranquila, mas muito surpreendida. O meu bocejar diminuía à medida que as rezas eram feitas e parou definitivamente, quando as gotinhas do azeite ficaram suspensas na água.
A minha curiosidade era do tamanho da minha fé. Sem qualquer dor, agradeci à senhora Piedade e perguntei-lhe:
- Senhora Prazeres, que aconteceu?
O que me fizeram?
Ninguém me maltratou, creia!
Foi, nesse dia, que fiquei a saber, a força que pode ter um simples olhar, o " olho gordo" como chamou a senhora Piedade.
A partir daquele dia, em várias aldeias do Montemuro, Pimeirô, Bustelo da Lage, Moura Morta...fui curada por pessoas que sabiam rezar ao quebranto. Não só ao quebranto. mas também, rezavam a outros males que partilharei convosco.
Aldeia de Moura Morta
Perguntarão vocês:
- Então, toda a dor de cabeça era quebranto?
Minha resposta é não.
Nem sempre o azeite se espalhava e, quando assim acontecia, pura e simplesmente, a reza não se fazia!
Acredite quem quiser. A minha crença é tanta, que, ainda hoje, recorro às pessoas que herdaram este legado dos seus antepassados.
Com estes meus escritos, o meu objetivo é preservar a Sabedoria Ancestral e não fazer dela uma religião, muito menos algo pré-estabelecido.
O meu objetivo é divulgar os conhecimentos, as práticas, os rituais dos nossos antanhos, perpetuados nos rastros que deixaram na nossa história, a história que eu própria tive o privilégio de viver.
Celeste Almeida, a Autora do Texto