20 Jul
20Jul

Seduzida pelo universo e sua ligação ao tempo, a único fronteira que me limita os espaços, é a linha que separa a vida da morte.

 Germinadora de muitas emoções, narro com o meu espírito de partilha, o que vou colhendo, desbravando caminhos sinuosos e vertentes escarpadas. Depois de tantas voltas o sol dar na minha vida, paro na aldeia, onde sou peregrina das luas, a aldeia que me escolheu para viver. 

Situada numa colina, na margem esquerda do rio Paiva, aparece a aldeia de Ribolhos, nome que até ao século XVIII, se escrevia Ribollos.


 Não recuando tantos séculos atrás, considero interessante fazer uma trança do que ouvi, do que vi e da palavra para dar a conhecer dois mundos: o ontem e o hoje. 

Ribolhos, conhecida por " Terra dos Barros Negros" , conduz-me, naturalmente, a uma herança cultural que ofereço aos leitores, para que estes sejam os ecos que potenciarão tantos silêncios.

Ribolhos, onde a roda da vida, girava, girava e a obra nascia. Assim, fazia o Mestre Albino e o Mestre Zé Maria, dois oleiros que davam vida aos sonhos que cresciam nas poucas horas de sono. Dois Mestres, duas referências que deixaram um legado cultural nesta aldeia que lhes deve gratidão. 

Já lá vão alguns anos, que pedi à minha tia Trindade, filha do Mestre Albino, que me falasse do seu pai, Albino Ribeiro. 

Naquele tempo, era comovente ouvir a tia Trindade, emergir no passado da sua própria história. - Meu pai não era de Ribolhos. Nasceu em 1890 , no concelho de Resende, num povo da serra chamado S. Pedro de Paus. Ainda muito criança, deixou a sua terra, para acompanhar o pai que era pucareiro.Com o pai viajou, muitas vezes de pés descalços, calcorreando trilhos, abrindo caminhos ou seguindo as pegadas do burrinho que carregava toda a riqueza. S. Pedro de Paus ficava longe de tudo e o meu avô cansado do vai e vem dos dias, decidiu deixar a sua terra natal e residir na localidade de Arcas, concelho de Castro Daire. A razão principal desta escolha, deve-se à existência de argila, vulgarmente chamada de barro nas proximidades desta aldeia. 

Muitos foram os sonhos que amassou! 

Muitos foram os sonhos que suas mãos apertaram! 

Muitas foram as peças que produziu e enterrou na soenga ,um processo de cozedura ancestral que dava a cor negra aos objectos que produzia!

Muitas foram as vezes, que carregou o seu burrinho com o barro negro para vender pelas aldeias e feiras, regressando a casa com a carga toda. 

Naquele tempo de outrora, a pobreza era muita. A miséria era um estigma que abrangia praticamente todas as pessoas desta extensa região e num canto da casa onde vivia pai e filho, crescia o monte da loiça e crescia o negrume da vida. 

Já nada prendia ali o pai do Mestre Albino. 

Foi então, que decidiu regressar à sua terra, mas o filho Albino, já rapaz com olhos para as raparigas, decidiu ficar em Ribolhos. Cá seguiu a arte herdada do seu pai, a arte de oleiro. 

Nesta aldeia conheceu uma adolescente, uma cachopa muito bonita e enfeitiçou-se por ela, não obstante a diferença de idades. 

Contudo, a guerra, a maldita guerra, afastou-o daquela adolescente roliça, de cintura fina e olhos grandes. Não foi soldado na guerra, mas teve que lutar pela sobrevivência num campo de batalha, onde o medo e o desespero o arrastavam para as trincheiras. Conheceu de perto a fome. Esteve nas filas com uma senha na mão, mendigando um naco de pão que a maioria das vezes acabava antes dele estender a mão.

Resiliente, foi trabalhar na agricultura para o Ribatejo a troco de um mísero salário e anos mais tarde, com umas moedas no bolso, regressou a Ribolhos. 

Glória era já uma linda mulher e com ela casou. São as voltas que a roda da vida dá. 

E, o Mestre Albino fez da roda de pau e do barro amassado com o suor que lhe lavava o rosto, o seu sustento. Num buraco escavado no chão,a chamada soenga, colocava as panelas, os pucarinhos, as tendedeiras, os assadores de castanhas, os bonecos...que depois de cozidos ia vender pelas feiras e aldeias. 

Algumas vezes, o burro regressava a casa com a mesma carga e sem pão para a mesa de pinho, mas Mestre que é Mestre nunca larga o seu ofício por mais duras que sejam as adversidades do cotidiano.

‍A dureza das suas mãos, como por magia, acariciava as cordas de uma guitarra portuguesa e com a alma a chorar acalentava as mágoas e secava as lágrimas nas cordas que timbravam de dor. A roda dos filhos ia crescendo à sua volta e o Mestre Albino fazia timbrar a aridez de um tempo escondido num relógio de cuco que se calou para sempre. 

Celeste Almeida, a autora deste texto.


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