04 Mar
04Mar


Chegou, transportando no semblante uma tristeza sem fim. Olhou em redor e percebeu-se sozinha naquele espaço estranho, apesar das muitas crianças que se encontravam no recreio. 

Era um dia diferente, carregado de emoção, de novidade e tensão. 

Nas suas mãos, as mãos enrugadas da avó, suplicando que se portasse bem, que não fosse deseducada e que estivesse com o máximo de atenção para apreender o todo possível.    

Era tão importante ir à escola!… E ninguém o sabia como ela, que sempre o desejara e não tivera essa possibilidade.  

Bem sabes, minha querida, como te quero bem! Se te digo que é muito importante que venhas à escola, é porque o é de verdade! 

- sussurrava a velhota, de expressão dura no rosto, mas de sorriso doce e cativante no olhar. 

Na verdade, nada lhe era mais caro na vida do que a boa educação da neta que praticamente criara sozinha. 

Se tinha algum desejo escondido? 

Tinha muitos e o maior deles era ver a sua menina a cursar no ensino superior para que um dia, ambas dessem uma bofetada de luva branca àqueles que as tinham desprezado e deixado para trás. 

… 

Os anos passaram. No meio da multidão em euforia, Rute tem ainda a sensação de escutar a voz rouca da avó a dizer-lhe: 

“Filhinha… Nada me faria mais feliz do que ver-te formada!”    

E lá estava ela na festa de formatura, já mestrada e pronta para integrar o mundo do trabalho. 

O diploma, ou ‘canudo’, como tantos lhe chamavam, seria o testemunho de muitas noites sem dormir.  

De pressões tão fortes que quase a levaram à loucura.  

De tantas lágrimas vertidas com medo de não ser capaz.  

Atingira os seus propósitos.  

Realizara sonhos e adquirira conhecimentos importantes para a vida. Devia-o ao esforço e amor incondicional de sua avó, mas, também, à própria determinação. 

Gertrudes deixara este mundo com a certeza de missão cumprida, pouco tempo depois de Rute ingressar na universidade.    

Partiu, todavia, com uma enorme dor no peito.  Seu coração de mãe ia despedaçado pelo abandono a que o único filho a remetera, quando emigrara para o estrangeiro e por lá decidira ficar, esquecendo da família por completo.    

Notícias? 

Não dera, quiçá, pela má influência que a nova companheira exercia sobre ele. 

Mulher de má índole e conduta duvidosa 

- assim pensava a velha Gertrudes ferida no ego e nas expectativas - destruíra-lhe o casamento e levara Graça, a esposa legítima, a cometer loucuras, pois que, na desilusão, se perdera em copos e drogas, esquecendo da criança e de si mesma, tal como do mundo que a rodeava. 

Deus tivera compaixão do seu sofrimento e levara-a cedo para junto d´Ele.   

Gertrudes seria agora mãe e avó, com o firme propósito de fazer de sua neta alguém na vida.  

… 

Rute acordava para uma nova realidade… A procura de trabalho na sua área de formação acontecia diariamente, enviando currículos e dando entrevistas, mas estava difícil de conseguir uma colocação. Para responder às necessidades básicas, fazia como muitos outros jovens da mesma geração, que iam aceitando o que surgia em épocas sazonais e em qualquer área, desde que decente e honesta. 

Os mais ambiciosos e aventureiros acabavam por seguir a ‘sugestão amarga’ de um primeiro-ministro que incentivava os jovens com formação académica à emigração.    

E eram muitos os que rumavam para o estrangeiro à procura de trabalho e de melhores condições salariais. Os valores e conhecimentos dos jovens portugueses eram aproveitados e valorizados lá fora, enriquecendo e elevando aqueles lugares, enquanto o deles empobrecia cada vez mais, levando à falência dos sistemas e à despovoação. 

Talvez emigrar fosse também para ela a oportunidade de se realizar profissionalmente e de construir um futuro risonho.         

 … 

O tempo de estágio terminara. Rute tinha agora de tomar decisões acertadas.  

As opções não eram muitas.  

Ou ficava sozinha e entregue a si mesma ou seguia com aquele homem, que praticamente desconhecia, para a Suíça.  

Zermatt era a cidade onde o pai trabalhava. Ali se centrava a maior comunidade de emigrantes portugueses, muitos deles castrenses. 

Talvez devesse arriscar!

...  

Se não se enquadrasse na nova vida familiar, procuraria outras soluções. Com tanto português por ali, seria fácil fazer novas amizades. Depois, não teria problemas com a comunicação. Dominava o inglês e rápido aprenderia o alemão e o francês. 

Sendo oriunda de um povo poliglota, que é capaz de se adaptar a qualquer cultura e de aprender qualquer língua, também a ela não seria difícil essa aprendizagem e adaptação.  

Era rapariga de bom senso e, por isso, tentaria harmonizar o mais possível a convivência com a família do pai.    

Entretanto, buscaria respostas que a levassem a compreender o porquê de tão prolongada ausência. Revolta? 

Sim, sentia! 

Mas onde é que isso a levava e em que é que a favorecia? 

Quanto à ideia que tinha de um pai

... 

Fechou os olhos. Aos poucos foi voltando atrás no tempo, numa retrospetiva do que tinha sido a sua infância. A primeira imagem que lhe assomou à mente incluía sua avó Gertrudes, um jardim, um pequeno parque infantil e muitas crianças em euforia, brincando com os pais, andando de triciclo e jogando à bola. A um canto do mesmo perímetro, uma menina observava, triste no semblante, o baloiço vazio da sua realidade, mas também dos seus propósitos, pois já decidida a tudo fazer para alcançar os seus objetivos e ser feliz. 

E não deixava de o ser naquele momento…

 

In “PEQUENOS CONTOS – TRECHOS DE REALIDADES”, Chiado Books, 2020


Dulci Ferreira, a autora do texto

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