A noite morria sem queixumes na penumbra pesada, como um enorme manto feito de ardósia.
A madrugada acordou triste e fria, naquela longínqua aldeia, desperta pela torre sineira do Convento de São João de Tarouca.
No Santuário de Santa Bárbara perpassava uma espécie de serenidade interrompida pelo eco do Bom Pastor pedindo proteção à Santa, contra as mortes trágicas do seu rebanho.
A aldeia de Almofala mergulhava nas janelas da solidão. Mães e esposas passavam tormentos e amarguras adormecidos nas águas que engoliam as memórias.
A primeira guerra mundial calava-se nas bocas salgadas da garganta. Uma guerra demasiado transcendente para o entendimento daquela gente tão sábia quanto inculta. Gente habituada às palavras de coragem, de fé e de esperança lidas nos livros sem folhas.
Era quinta feira.
Uma quinta feira avivada nos segredos dos mistérios dolorosos do Senhor.
No horizonte caía uma espécie de fumo que se esbatia no adro da Igreja Matriz.
As folhas dos castanheiros bailavam no ar procurando refúgio no forno público, abençoado pelo Nosso Senhor da Aflição.
O Tio António levantou-se com o cantar do galo emproado. Ainda em ceroulas ajoelhou-se, colou as mãos e fez a sua oração da manhã, ao Senhor da Boa Sorte:
-Concedei-nos, Senhor, a nós, Vossos servos, a perfeita saúde da alma e do corpo e, fazei que, percorrendo aqui na terra o caminho da fé, da esperança e da caridade, sejamos dignos, da abundância dos Vossos dons, no reino dos Céus.
-Vós que viveis com o Pai na unidade do Espírito Santo.
-Ámen.
Depois, espreitou a enxerga do filho e com voz altiva e calorosa, chamou:
-Anda, meu filho! Temos que ir por a mó no moinho, pois o pão faz falta cá na mesa.
Depressa as vacas foram junguidas ao carro. Pela rua estreita e lamacenta, o ruído das rodas era amortecido pelo aproximar do rio que corria feroz, envergonhado no leito inocente.
Tudo parecia correr na paz do Santíssimo, não fossem as margens do caminho ruir e engolir numa ribanceira, o pequeno Francisco, as vacas e o carro.
Com a aflição presa nas entranhas o Tio António evocou o nome de Deus, num grito que cortou toda a natureza e abriu chagas nas fragas rochosas.
-Meu Deus e Senhor, Sagrado Coração de Maria, não permitais que nada de mal aconteça ao meu rico filho, nem às pobres vacas. Ajudai-nos nesta hora de aflição.
O moinho ouviu as preces do Tio António e afogou-se nas sombras do dia.
O rio engoliu o choro.
As águas cantavam canções doces que chegavam às alminhas do purgatório.
A esperança vestiu-se com a fé pulsada no olhar do amor paternal.
Tio António, homem de bem. Homem crente. Na fragilidade e nos perigos dos cardos, renasceu nos mistérios escritos entre o Céu e a Terra.
Alimentado pela Luz que lhe veio do alto, perpetuou aquele milagre no silêncio das pedras, plenas de vida e de oração.
Ao passar por este local, elevamos os olhos nas alturas e naquele presente viajamos por outras eras e por outros tempos.
As pedras contam aquele secreto oculto adormecido nas palavras estigmatizadas com o sangue derramado do Tio António.
"Oferta ao Sagrado Coração de Jesus e sua Mãe Maria Santíssima, António Morais vendo seu filho em perigo de vida, Nosso Senhor o livrou da morte".
Celeste Almeida, a autora do texto