(tempo sem laços)
É incrível como ainda me vês
Apesar do meu corpo curvado
Dos meus olhos núbios
Lacrimejantes
Da minha voz rouca, tremente
Dos meus cabelos desgrenhados
Dos meus passos incertos
Em trilhos por mim esquecidos.
É incrível como ainda me vês
Na insegurança das pegadas
Que marcaram um tempo
Que escolheram caminhos inglórios
E se embrenharam em labirintos de pura ilusão
Cenários de um tempo sem laços
Onde apenas deveríamos caber os dois.
Havia guerras e insurreição
Nesse território, por vezes, hostil
De mim, planalto íngreme e sinuoso
De ti, planície árida e infrutífera
Quando nos atingia a farpa afiada
Da incompreensão.
Já tudo ficou para trás e se fez longe
Sem, contudo, nos permitirmos mergulhar
No abismo da deceção.
É incrível como ainda me vês
Depois de tantos sonhos largares por aí
E de os aninhares em colos alheios
Sentimentos baralhados em gestos difusos
Versos ardilosos atirados ao vento
Sem estanque, sem freios
A cega loucura dos momentos.
Mas ainda me vês
Ainda encontras beleza
Nas rugas de um rosto que foi
Nas pregas de um corpo que por paixão se deu
Sem pudor, sem preceitos, sem limites
E na mesma medida recebeu.
É incrível como ainda me vês
Como me sentes vibrar de emoção
Nas horas em que o Sol se apaga
No luar que a Lua propaga
Na ausência que nos mata de saudade
Na alegria que sempre nos trouxe liberdade.
Ainda me vês
Na certeza de já ter sido morada
De já ter sido a estrada
O sonho e a pegada firme
Que no colo te levava para casa.
Ao entardecer,
O aroma do incenso
A orientar-nos os passos e as expetativas
O calor da pele a aconchegar
Tantos momentos de prazer.
Mas ainda me olhas
Me sentes
E procuras
E eu, no meu olhar de infinito
Perdida no labiríntico universo
De um vazio impossível de preencher
Olho-te e digo:
- Não sei!
E pergunto quem és Por já não te conseguir reconhecer.
(Aos doentes de Alzheimer)
Dulci Ferreira, a autora do texto