23 May
23May

Na aldeia de Mouramorta, ouviam-se as dores de Maria prestes a dar à luz.

O cheiro a canela pairava no ar, antecedendo o espírito natalício.  

Na Igreja as palhinhas do presépio enalteciam a natalidade orquestrando cânticos angelicais.  

No horizonte as nuvens escondiam-se atrás das montanhas.  

O sol caminhava lentamente, atrasando o manto negro que iria cobrir todo o universo. 

As lavadeiras curvavam os corpos no lavadouro do tanque, a dois passos da escola. Batiam a roupa ensaboada na pedra, ritmada pelas conversas do alheio. As águas agitavam-se com o peso do surro das roupas corroídas pelo uso. 

Na leira, mesmo ao lado do fontanário, brincava feliz o pequeno Márcio. Criança, de quatro anos, carregava nos pés o sofrimento da operação feita, ainda bebé, para lhe proporcionar caminhar atrás dos seus sonhos. 

Sua mãe, atenta às traquinices do menino, alertava-o para os perigos. -Tem cuidado, Marcinho, não caias! Olha aí esses penedos. Não tropeces, lembra-te que teus pezinhos são muito delicados. 

-Não se preocupe, mãezinha. Eu ando a caçar coelhos com esta vara. Tenho que apanhar três. Um para mim, outro para a avó e outro ainda para a Tia Otília. Vou caçá-los com esta vara, vê mãe? 

A mãe sorria com um olhar místico no eco das palavras ouvidas e repetidas daquele povo.

-Eu bem te digo, Adília, eu bem te digo, que este menino não veio ao mundo para ficar.  

Lembra-te, que ele não é teu, por isso vai-te preparando para o veres partir. 

-falou-lhe na alma, a Tia Maria, enquanto estendia as toalhas de linho no coradouro. 

-Não me diga isso, Tia Maria que se me rasga o coração. Anda cá, meu filho, vem comer esta maçã. Depois, voltas para a caça. 

O Marcinho pousou a vara em cima de uma pedra e no seu vagar apressado apanhou a maçã, voltando para a sua luta. 

Os coelhos não saiam das tocas e estava difícil pôr a ceia em três mesas.

As ramadas dos pinheiros estendiam os lençóis no recreio da escola. 

A água do tanque pintou-se da cor do sabão azul.  

Nas bacias amontoava-se o aconchego dos corpos.  

O lavadouro deixou de sentir as carícias das mãos calejadas.  

No murmulhar da fonte, calou-se o universo inteiro.  

A luz da vida da Tia Adília cegou nos seus olhos.  

O Marcinho já não estava na leira. 

Com a bacia da roupa, caminhou apressada no eco das palavras que tantas vezes ouviu. 

"Vai-te preparando Adília, o teu filho não veio ao mundo para ficar. 

Ele não é teu."  

Com a esperança metida num bolso, foi a casa da irmã Otília. 

-Ó Tila, o meu filho está contigo? 

-Não, hoje ainda não lhe pus os olhos em cima. -respondeu ela, com a aflição tecida no peito. 

A toda a pressa, voltaram ao fontanário.

O chapéu de palha da criança chorava em cima da pedra fria do bebedouro das vacas.  

No fundo jazia o menino.  

Os braços afogados na água, retiraram a criança morta.  

Ninguém ouviu as lágrimas que cairam da bica.  

Ninguém viu os Anjos que vieram buscar aquela criança, nas penas molhadas.  

A aldeia chorou. A fonte não secou. A saudade ficou a correr para sempre na nascente, que brota no coração da mãe, que continua a ouvir o eco das palavras daquela boa gente. 

Eu, jamais, voltei a abrir a porta da escola, por onde entrava o sorriso de uma criança, de quatro anos, todas as manhãs e me pedia: 

-Senhora professora, posso ficar aqui contigo?  

-Podes, meu amor, tu ficarás para sempre no meu coração.  

Fazes parte da minha história. Uma história triste, a ensombrar tantas outras alegres, que vivi na "minha" aldeia, onde alguns anos lecionei.

Celeste Almeida, a Autora do Texto

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