Meus pais possuíam um pequeno rebanho de cabras e ovelhas que eu pastoreava diariamente depois da escola.
Se gostava de ser pastora?
Claro que não!
Muito pelo contrário.
E a razão era simples, pois, ao meu rebanho, era obrigada a juntar o de mais três ou quatro proprietários e enquanto eu me esfalfava a correr atrás dos animais deles pelos montes, os filhos ficavam a estudar ou a brincar.
Isso dava-me cabo dos nervos e provocava-me uma certa instabilidade emocional.
A minha revolta era principalmente contra os meus pais que nunca diziam não a ninguém.
Tomar conta de vinte cabeças de gado não era o mesmo que tomar conta de cinquenta.
Depois, as cabras estavam sempre a fugir para os terrenos de plantio. Não me davam um momento de sossego!
Bode (ou chibo, como lhe chamam em certas localidades), não sei se alguma vez tivemos, mas carneiro para cobrir as ovelhas, sim.
Todos os que recordo foram batizados com o nome Zeca.
Era o meu pai que escolhia o sucessor do reprodutor quando aquele já estava velho. Como tal, selecionava o melhor borrego do ano e sempre que podia, brincava com ele e ensinava-o a marrar.
Como?
Punha-se de cócoras em frente ao bichinho e chamava-o pelo nome:
“Zeca, Zeca…”
E ia passando a palma da mão em riste, levemente na cabeça do animal como se fosse, primeiro uma carícia, depois uma suave investida.
Com meia dúzia de tentativas, já o bicho dava pelo nome. E lá ia ter com o meu pai para treinarem uns golpes de ataque e defesa. Era precisamente para que se defendessem dos rivais de outros rebanhos que meu pai os ensinava a marrar. Assim, estariam fortes e invencíveis quando assumissem o lugar que lhes competia.
Sobre o carneiro Zeca tenho uma história muito interessante para vos contar…
É verdade que sempre fui uma exímia amante da leitura. Costumo até dizer que foi a ler que aprendi a expressar-me melhor oralmente e também a escrever.
Ler faz bem e faz falta.
Educa e cultiva e eu sempre gostei de ir mais longe em matéria de conhecimento.
Queria fugir à ignorância que via prevalecer entre as pessoas rudes da minha aldeia.
E ler era também viajar pelas experiências de vida dos escritores.
De modo geral, todos se baseiam nas suas memórias, nas suas tradições, nos seus gostos, nas suas ambições. Trazem-nos os seus conhecimentos, as suas experiências de viagens, as suas aventuras, os seus problemas pessoais, os acontecimentos extraordinários do seu tempo, os seus sonhos, as suas paixões. Enfim… as muitas vidas vividas durante a vida que Deus lhes deu.
Nos livros, encontramos, também, as ideologias sociais, religiosas e políticas dos autores. Como pensavam, o que defendiam, no que acreditavam, como agiam. Resumindo, há uma infinidade de coisas que se aprendem lendo muito e que nos tornam pessoas mais sábias e preparadas para a vida.
O meu gosto pela leitura surgiu quando comecei a saber juntar as primeiras letras na escola primária. Sendo oriunda de uma aldeia do interior, onde não havia bibliotecas, e não havendo na família recursos para comprar livros ou mesmo ter acesso a eles (havia poucos e não estavam ao alcance de toda a gente), lia tudo o que estivesse à mercê dos meus olhos.
Podia ser os componentes de um pacote de massa ou arroz, de uma lata de conservas ou um pedaço de jornal já velho que alguém deitasse fora. Havia ainda os almanaques anuais e a revista Além-mar (revista mensal dos Missionários Combonianos) e os periódicos que chegavam da diocese de Lamego e que eram distribuídos pelos assinantes a partir da igreja ou do Centro Paroquial da aldeia.
Quantas peripécias eu vivi por causa da pastorícia e da minha paixão pela leitura!…
Era como renascer a cada nova história, a cada nova aventura experienciada. Fazia parte da narrativa. Estava lá em corpo e alma, ao ponto de me abstrair totalmente da minha realidade e “mergulhar” na “realidade” de outros, acabando, não raras vezes, por me causar dissabores.
Certa ocasião, os meus pais decidiram ir sachar o milho da tapada da Juvenca e meu irmão foi com eles. Era sábado e havia que aproveitar a presença de todos em casa para adiantar o trabalho nas terras de cultivo. Eu tinha um vício enorme de ler e não podia andar sem livros na sacola. Qualquer altura era ideal para me embrenhar na leitura. Na verdade, até na hora de comer eu lia. Enquanto não terminasse uma obra, não descansava. Quando acontecia, tinha de ter logo outra para começar, caso contrário, a sensação que sentia era a de um enorme vazio. É caso para dizer que a própria realidade não me preenchia.
A tapada era longe da povoação e no cimo do monte, e tinha duas leiras cultivadas e dois calços de mato e lameiro. E os lobos acoitavam-se por ali. Era preciso estar atenta para evitar que assaltassem o rebanho.
Naquele dia, enquanto os meus pais e o meu irmão sachavam o milho, eu, como sempre, ocupava-me do pastoreio. Os animais espalhavam-se pelo lameiro, desfrutando da erva verde e do viçoso leborinho. Enquanto o gado pastava, eu estendi a capucha de burel e deitei-me sobre ela a ler de barriga para baixo. Completamente absorvida pelas peripécias que aconteciam na trama, nem reparei que o carneiro Zeca pastejava tão perto de mim e que tinha intenções de me cumprimentar muito à sua maneira. Melhor dizendo, do único modo que sabia: à marrada. Quando, de repente, levanto a cabeça e encaro o bicho, só tive tempo de dizer:
- Zeca… Cuidado!
– Mas já o animal encostava a sua cabeça à minha, deixando-me o nariz a sangrar. Gritei por socorro e o meu irmão veio logo a correr para ver o que se passava, não fossem por lá os lobos a atacar o gado.
Quando me viu com a cara toda ensanguentada, agarrou em mim ao colo e trouxe-me imediatamente para casa. Entretanto, o sangue estancou e com os cuidados de uns e as mezinhas de outros não foi preciso chamar o pronto-socorro. Mas passei um mau bocado e fiquei com alguns problemas no nariz.
É de salientar que a marrada que o Zeca me deu não foi violenta, pois fora apenas um cumprimento.
No entanto, fez mossa, como não?
Com aqueles enormes e retorcidos cornos ter-me-ia matado se me desse uma marrada a sério.
…
Na aldeia, toda a gente temia cruzar-se com o Zeca, não fosse ele o maior garanhão dos rebanhos que existiam na povoação.
Houve um dia, bem próximo do Natal, em que pastoreava o gado no monte dos Chãozinhos, quando vi o carneiro levantar o focinho e arreganhar o beiço superior, mostrando os dentes. Estendi o olhar na mesma direção e vi que andava um pastor com o seu rebanho na outra margem do rio, bem longe do espaço em que me encontrava a pastorear o meu.
O Zeca continuou a inalar o odor que lhe chegava da banda de lá e que só podia ser de um rival ou de alguma ovelha no cio.
De repente, vejo-o a correr monte abaixo, atravessar, destro, as poldras do rio e subir o cerro para conquistar território e o direito a tomar as fêmeas do grupo.
O problema é que esse pastor também tinha um carneiro grande e os dois lutaram até à exaustão.
As lutas entre carneiros são ferozes e perigosas.
Ninguém se pode meter no meio.
Como tal, o melhor era deixá-los gastar a adrenalina provocada pela testosterona, até que um deles se desse por vencido.
O dia já declinava quando começou a molinhar. Reuni o gado e desci devagar o monte. O ar adensava-se gélido nas minhas narinas e os meus pés arrefeciam nas galochas. Valia a capucha de burel para me agasalhar.
Pouco tempo depois, já acomodava os animais nas respetivas lojas. De referir que, embora o rebanho pertencesse a três ou quatro proprietários, nenhuma rês se enganava no momento de entrar no respetivo curral.
Do Zeca, ainda nada.
Foi já tardiamente que atravessou a povoação, com a cabeça ensanguentada, os testículos a abanar, todo lixado, mas sem perder a imponência. Conforme ia passando, as poucas pessoas que ainda circulavam na rua aquela hora, afastavam-se temerosas para deixá-lo seguir sem problemas. Soube na manhã seguinte que durante a luta partira um corno ao seu rival.
In “Memórias de um tempo díspar”, janeiro, 2025
Dulci ferreira a autora do texto