Chegou ao cimo do monte e alongou o olhar, perscrutando cada centímetro de chão que se projetava para lá do terreiro, onde todos os anos se celebravam as festas em honra do Senhor da Livração.
Pedras, tojos, carquejas, sargaços e urzes; um carvalhito aqui outro ali cobriam a paisagem e embelezavam o horizonte. Ao fundo, fumegavam as pequenas chaminés das casas de granito da bucólica aldeia de Cujó.
Maria extasiava o olhar no todo envolvente: a fonte que brotava em abundância, esparramando o precioso líquido pela viçosa vegetação do parque de pinheiros mansos que libertavam um aroma suave e fresco; as mesas e bancos de pedra, onde os romeiros e devotos do Santo saboreavam as merendas; o altar da celebração e o crucifixo lavrado na pedra. Mais para sul, o pequeno lago, onde as rãs proliferavam.
O ponteiro do relógio acercava‑se das três horas da tarde.
O mês de junho apenas despontava, mas já prometia um verão quente e estarrecedor.
Maria aspirou profundamente a deliciosa e fresca atmosfera que a sombra dos pinheiros presenteava, enchendo o peito de ar e de vida. Sempre que podia, subia o monte e ali permanecia por longas horas, meditando e desfrutando do silêncio e da bela paisagem que o lugar oferecia.
Aquele era também o recanto onde gostava de partilhar sonhos e afetos. Amava Pedro, mas ele nem sempre lhe correspondia como desejava, definindo para si outras prioridades.
– Será que vem? – questionou‑se.
Afinal, já era hábito esperar horas a fio por uma pessoa que raramente cumpria o que combinava, avisando quase sempre à última hora se ia ou não poder estar com ela. Era sempre assim. Na verdade, nem sabia porque continuava a persistir naquela relação.
Um não podia amar pelo outro.
É preciso que haja reciprocidade para que as relações se harmonizem.
Com Pedro nunca sabia se podia contar, acabando, na maioria das vezes, sozinha e desiludida. E naquele dia não seria exceção.
Zanzou de um lado para o outro durante algum tempo. Estava nervosa, agoniada no meio de tanta incerteza.
Impaciente, sentou‑se dentro da viatura e ligou o botão do rádio para ver se as vozes dos locutores ou alguma música de momento a distraía. Porém, a impaciência já a corroía por dentro.
– Se ousar não aparecer, será a última vez que vou em cantigas!
– Prometia a si mesma, numa espécie de monólogo interior.
…
Adorava aquele lugar. De um lado, o terreiro de terra batida que o sol beijava sem parar, a capela do Senhor da Livração e a paisagem a perder de vista; do outro, o pequeno bosque que emanava sombra e frescor.
Maria olhou uma e outra vez o relógio de pulso…
Decididamente, Pedro não iria comparecer. Fechou a viatura e trancou‑a para evitar surpresas desagradáveis, não fosse aparecer por ali alguma criatura mal‑intencionada e fazer das suas.
Podiam roubar‑lhe o carro, por exemplo. Não devia arriscar.
Meteu as chaves no bolso dos jeans e embrenhou‑se na floresta.
Caminhou devagar, galgando ervas e monte até chegar à clareira, onde o pequeno lago de fundo azul repousava, convidando a um banho refrescante.
– Que lugar maravilhoso! – exclamou. – Parece que encontrei o paraíso!
Estendeu o olhar… Ao longe, rodavam tranquilos enormes aerogeradores.
Maria pensou no que seria dali a uns quantos anos; se aquelas imponentes máquinas não virariam ferro velho abandonado na paisagem, aliás, o preço a pagar pelo progresso e pelas técnicas da modernidade, em constante evolução.
Por agora, tudo lhe parecia mágico e misterioso.
Olhou em redor… O Sol queimava e o lago convidava a refrescar a pele e a alma.
Questionou‑se se seria seguro tirar a roupa naquele lugar, tão ermo e agreste.
Também a profundidade da represa a preocupava, mas creu não ser demasiada, apesar do lago ter sido criado com o intuito primeiro de servir de reservatório para os helicópteros se abastecerem de água, em caso de incêndios no verão.
Reparou também na tabuleta que dizia:
“PROIBIDO NADAR!”.
Para além das assinaladas ressalvas, o belíssimo espelho de água estava protegido por uma agressiva sebe de arame farpado.
Se por um lado lhe parecia arriscado ignorar os explícitos avisos, por outro, a vontade de desobedecer sobrepunha‑se à racionalidade, decidindo invadir a represa e adentrar o convidativo e purificador líquido cristalino.
Precisava libertar‑se de toda a pressão quotidiana e espojar‑se de uma vez na água fresca, desfrutando ao máximo do que a natureza lhe oferecia.
Impulsionada por uma força misteriosa que não compreendia, fê‑lo. Achou uma pequena abertura na sebe e entrou, abeirando as verdes margens. Lançou um olhar fugidio em redor e indagou pormenorizadamente a robustez delicada do lugar.
Fechou os olhos…
Uma brisa suave acariciou‑lhe o rosto, qual beijo doce inesperado e deixou‑se ficar sentindo a ternura daquele afago que abeirava a realidade.
Num momento estava nua. Não andava ninguém por ali e desejava ter essa experiência.
Como seria nadar exatamente como viera ao mundo?
- Liberdade! – gritou em euforia.
Sim! Maria sentia uma enorme sensação de liberdade… E nadou, mergulhou, brincou, enquanto todas as forças do universo convergiam para um mesmo ponto.
De repente, tudo mudou. O vento soprou forte, provocando um remoinho na água que a sugava para as profundezas de um abismo até ali inexistente. Queria gritar, mas a voz abafava‑se‑lhe na garganta. O corpo pesava. Os braços doíam de tanto esbracejar, tentando, a custo, suplantar o medonho buraco negro em que imergia, mas o ‘monstro’ da água era mais forte e arrastava‑a violentamente para as profundezas do estranho e obscuro abismo.
A jovem lutou enquanto pôde, até, já sem forças, se deixar submergir…
– Moça… moça! – chamou uma voz doce e delicada.
Ela abriu os olhos devagar. À sua frente surgia uma mancha branca que lhe ofuscava o olhar.
Um foco de luz?
Um anjo, talvez!…
Aflita, tentou tapar a nudez com as mãos, mas viu que estava vestida.
E aquele de camisa alva à sua frente…
Quem seria?
Enquanto esperava pelo namorado, Maria recostara‑se no carro com as portas e as janelas trancadas.
O calor concentrado no interior da viatura provocara‑lhe uma sonolência indescritível.
As horas foram passando.
O oxigénio que existia dentro do automóvel terminara e ela quase embarcara numa viagem sem volta.
Carlos Oliveira surgira naquele lugar por mero acaso. Ainda hesitara em parar, mas uma energia estranha e uma secura inesperada, impeliram‑no para a fonte de água fresca que brotava no terreiro. O veículo abandonado no local despertou‑lhe a atenção. Talvez o dono andasse a explorar a natureza… podia ser um biólogo, um etnólogo, um especialista em arte sacra.
Não seria nada de admirar, visto ser aquele, também, um lugar de oração.
Poderia ser uma pessoa qualquer que ali tivesse decidido parar para descansar um pouco….
Carlos não entendia a tremenda curiosidade que sentia e que lhe gritava a necessidade de aproximar‑se e espreitar para dentro da viatura largada no meio do terreiro.
Ao ver a rapariga em total abandono, bateu com força no vidro para lhe despertar a atenção, mas a moça não reagiu, continuando exatamente na mesma posição.
O jovem apercebeu‑se do perigo e tentou abrir a porta, não obtendo resultados. Sem pensar demasiado, pegou numa pedra e com ela partiu um dos vidros, destrancando o veículo.
Retirou de dentro dele o corpo inerte da rapariga e com a destreza de um profissional de saúde, deu imediatamente início ao processo de reanimação.
…
Maria não podia acreditar no que acabava de lhe acontecer, repreendendo‑se pela atitude irresponsável que tivera ao trancar‑se dentro do automóvel com as portas e janelas fechadas.
A música acabou por relaxá‑la, levando‑a a adormecer. Fazia pouco tempo, condenara veementemente um pai que esquecera o filho bebé no banco traseiro do carro, num dia de sol abrasador, com as portas trancadas e os vidros fechados durante várias horas, provocando a morte à criança. O terrível incidente acontecera lá para os lados de Aveiro e fora muito noticiado pelos meios de comunicação. Na ocasião, criticara, por demais, a atitude negligente do homem pelo abandono ou esquecimento do filho na viatura, com portas e janelas fechadas e agora, se Deus não tivesse enviado um de seus anjos para salvá‑la… Enfim… Nem queria pensar no que poderia ter acontecido.
Carlos chegara ao local certo à hora certa, quiçá, empurrado por uma força superior precisamente para socorrê‑la.
Fora o seu herói, a sua sorte. Deus dera‑lhe uma nova oportunidade de viver e ser feliz.
Precisava apenas de descobrir o que urgia mudar em sua vida para que pudesse desfrutá‑la em plenitude.
In “Pequenos contos – Trechos de realidades” – Chiado books, 2020
Dulci Ferreira, a autora do texto