Nasci em terra de sonhos, mas de dura realidade, onde o galo e o sino da igreja eram o relógio que despertava para mais um dia, no apego ao cabo da enxada ou do arreio do arado.
Bebi a água das fontes, mas também a do ribeiro e nadei nos açudes do meu Paiva, onde minha mãe lavava a roupa e a estendia a corar na fraga ou na erva verde dos lameiros.
Rio Paiva
Nasci na ruralidade, onde o cheiro do campo, do gado e das gentes se misturava com os aromas de uma natureza virgem e pura.
Pastoreei o rebanho, bebi o leite da cabra ao espremer da teta. Corri por montes e vales, com os cabelos ao vento e o sorriso no rosto estampado, por vezes, descalça, a alma lavada, uma rosa encantada que emanava cor, cheiro e alegria.
E assim, sonhadora e traquina, mas robusta e altiva na maneira de ser, rosa delicada ou diamante bruto que o sol lapidava ao entardecer, quando o cansaço obrigava a fechar os olhos e a adormecer na paz do senhor.
E todas as noites se rezava o terço em família, cantando e louvando a Deus por mais uma jornada.
Os corações, repletos de amor, pediam fervorosamente perdão pelas faltas cometidas e que nunca faltasse na mesa o pão de cada dia.
Nasci no abraço agreste do Montemuro, na vila de Castro Daire, a Princesinha da Serra, por vezes, suavidade ao nascer do sol, por vezes, atalho frio e obscuro, tal como o é um coração quando as coisas não correm de feição e as tempestades de inverno ou de verão obrigam a seguir pelo caminho mais duro.
Castro Daire
Nasci no meio de toscas pedras, em casas cobertas de colmo e paixão, onde os amantes se beijavam e amavam sem limites, fosse qual fosse a cor da estação.
Fiz viagens loucas e de sonho, sentada nas chedas dos carros de bois, enquanto os mais velhos carregavam o milho e o centeio ou enchiam as dornas de uvas, por altura das vindimas.
Presenciei primaveras mais ou menos coloridas e invernos terrivelmente hostis, contudo, maravilhosamente alvos.
Mas também vivi outonos floreados, plenos de movimento e cor e verões pouco quentes e prazerosos.
Nasci em casas velhas de granito, onde a lenha se ouvia a crepitar na lareira de chão, e as panelas de ferro ferviam ao lume, cozinhando a sopa que minha mãe fazia com o coração. O vapor que pelo ar se espalhava, um cheirinho a chouriça de carne ou salpicão emanava, e logo uma enorme vontade de a provar. No caniço, secavam as castanhas para depois pilar.
“Oh minha terra, onde eu nasci”,
Que de tão sublime e pura, te vejo agora noite escura, devastada pelos incêndios e pela maldade que perdura nos corações enregelados. Talvez um dia voltes a ser luz e verde, arco-íris a beber nos meus olhos e a oferecer leite, mel, magia e sonhos aos molhos.
In “Mimos, Beijos e Outros Aconchegos”, 2024.
Dulci Ferreira, a autora do texto