Na serra o vento crescia e corria pelos montes.
Um raio de sol saía entre as nuvens espessas e algodoadas, deixando à mostra um véu azul, deitado em lençóis de chuva estendidos nos regatos.
Na seriedade da oração, Tia Francisca fiava a lã, enquanto sua filha pendurava os fios no pescoço e os fazia deslizar entre os dedos.
Debaixo dos olhares, duas crianças de rostos trigueiros e sujos, alisavam o chão nos socos desdentados, correndo tropegamente atrás dos borregos. As ovelhas farejavam os arbustos desembocados nas fragas.
Mãe e filha punham no rosto o lustro das folhas silvestres erguidas nas telhas musgosas do telhado.
Enamorada da serra que a viu nascer, Tia Francisca beijava todas as manhãs, a chaga cicatrizada na alma, há muitos e pesados anos. Com ternura disfarçada no negro da sua roupa, sorria nos socalcos do seu peito, despejado e vazio de amor.
O amor que a miséria rota e esfarrapada, tinha espantado no voo de um pássaro sem penas nas asas, perdendo-se no canto dos céus.
Com a voz dolente e arrastada no murmúrio das agulhas, Conceição balbuciou:
-Senhora mãe, sua história de vida tem o perfume e o aroma das flores silvestres, mas o sabor daquelas laranjas tão ácidas que minhas filhas descascam!
Veja, minha mãe, a careta que elas fazem ao comê-las!
-Sabes, minha filha, deve ser por isso que eu não como laranjas! Para não ter que sentir o azedume da minha vida!... Prefiro uma colher de mel todas as manhãs misturado num gole de cachaça. Assim, fico rija como a casca áspera dos castanheiros que me endurece na solidão...
-Mas, minha mãe, eu morro de saudade do meu homem que foi para a Suiça, apenas há dois meses... já tenho trinta e nove anos e nunca conheci meu pai!..
Na doçura do crepúsculo enublado na alvura da lã, Tia Francisca desfolhou a resma de segredos que pingavam na chuva miudinha que se fazia cair. Com os olhos embaciados, cerrou as pálpebras diluídas nas lágrimas e abriu o livro esquecido e fechado na roca que segurava no peito.
-Foi uma noite horrivel, minha filha! Uma noite negra adormecida no sangue estancado no chão da cozinha. O frio rolava na montanha. Meus gritos lufavam no vento forte. A candeia apagou-se no teu choro, quando saíste das minhas entranhas. Aquelas lentas horas, eternizaram-se em minutos, em dias, em anos...
Sinto na minha alma, o cheiro da samarra do teu pai que há trinta e nove anos me abraçou num derradeiro tormento. Poucas horas antes de tu nasceres!...
-Mas, senhora mãe, nunca mais viu, o senhor meu pai?...Nunca mais?...
-Nunca mais , minha filha! Resignei-me no silvo daquele momento, o momento forrado num manto verde que lentamente apagava a luz, cada vez mais pálida do meu coração.
Hoje, continuo a fiar o meu desamor e desassossego, nos fusos calejados, fustigados pelo fumo paciente que me acaricia.
Minha mãe, a senhora foi uma infeliz, uma mulher sofredora...
Sabes, daquele amor idílico enterrado na minha alma, nasceu a mais bucólica e singela flor que todas as manhãs me veste de cores festivas e me acaricia como um raiozinho de sol...
As crianças já clamavam por um pedaço de pão. As ovelhas deitaram-se no chão sem uma verdura de relva. Os borreguinhos mordiam as tetas. A tarde anoitecia nos ramos dos carvalhos.
A um "vamos" da Tia Francisca, os socos arrastaram-se nos trilhos duros da serra, húmus do chão, linhas de um livro agora apagado pelos risos das crianças, esganiçado na chuva que lhes corria na cara.
Em silêncio...em oração... atravessaram a tranquilidade da serra, envolta na neblina que lhe saía das bocas quentes..
Celeste Almeida: Autora do texto