Não havia dia nenhum, que o gado não saísse da corte, a não ser que a neve adormecesse toda a aldeia de Bustelo da Lage.
Indiferente ao frio que parecia levantar-se do chão, mas feliz como os pássaros no seu voo, era rara a manhã, que eu não fosse com a Maria Helena para o monte, ou para os lameiros.
A telescola só começava às treze horas, por isso, professora e aluna eram as guardiães do gado.
Um pouco distante do casario, os animais pastavam no campo despido de culturas. Além de nós, mais ninguém se via. As ovelhas e as vacas comiam, alheias ao céu que começou a nublar.
O vento levantou-se, começou a uivar e a sentir-se como foices afiadas nos nossos rostos.
-Senhora professora, o tempo vai mudar! É melhor irmos embora!...
-Maria Helena, nem penses, ainda há pouco chegámos! O gado não pode ir sem comer! Não te preocupes comigo...
Um penedo acolheu-nos as costas, não para descansarmos, mas sim, para nos abrigarmos do frio e da chuva que tinha começado a cair torrencialmente.
Unimos as partes laterais das capuchas e fizemos com elas uma cabana.
Naquele paraíso, eu desafiava a natureza, com tanta alegria, como hoje, desafio o tempo e a memória... O silêncio era cortado pelo ritmo dos chocalhos e das campainhas do gado que se movimentava à busca da erva mais tenra e viçosa.
Mas...
Ouve-se uma ovelha a berrar. Maria Helena distinguia-as a todas pelo berrar. Sabia que era a Branquinha. (Ainda hoje, eu me pergunto, como era capaz, aquela menina, distinguir, uma por uma, as ovelhas pelo berrar! Sim, porque para mim, elas baliam todas de igual forma!) E, logo a Branquinha que andava para parir.
Ficou aflita, pois naquela manhã, o frio e a chuva tornaram-se tão fortes, que parir ao relento, poderia ser a morte do borreguinho. A Branquinha tinha-se afastado do restante gado. Era prenúncio que, brevemente, iria parir. Queria proteger a cria, não fosse algum animal pisá-la. Inquieta, caminhava em círculos. Depois acabou por se deitar...
-Vai parir, senhora professora, vai parir!
-disse minha aluna, num misto de contentamento e desespero.
Mas...quem sabe, sabe! A vida é uma escola, e, apesar dos onze anos, Maria Helena, já tinha visto muitas ovelhas, muitas vacas, muitas porcas, cadelas, coelhas... parirem.
Correu e logo atrás dela, corri eu. A minha capucha tinha caído ao chão. Já me não era precisa. Eu queria ter todos os meus sentidos bem libertos. A capucha da Maria Helena...essa foi precisa. Nela embrulhou o borreguinho ensanguentado e numa voz de comando chamou o gado que obedeceu às ordens.
-Morena, Violeta, Castanha...
E a "procissão" debaixo de uma chuva forte cantada pelo vento, lá seguiu num ritmo lento, com a alegria de quem ama a vida e pela vida é amado.
Eu embrulhei, a magia daquele momento, na minha capucha de burel...que, muitos outros momentos mágicos, testemunhou!
Celeste Almeida: Autora do Texto