O dia ainda vinha longe. A aldeia dormia o último sono, entre montes e vales, no vendaval dos galhos partidos nos pinheiros.
No céu negro, uma estrela trémula e luzente abria caminho nas densas nuvens que esvoaçavam no cume da serra, como corvos à deriva. A alvorada espreguiçava-se na cama, à beira dos regatos, sobre as raízes dos penedos.
Tia Maria levantou-se da enxerga de palha fresca e em silêncio rezou as Avé-Marias na memória das mãos.
Era dia de cozer o pão.
O canastro espelhava o vazio nas tábuas gastas e carcomidas pelo caruncho. Na arca restava o último alqueire de centeio, colhido no baldio estrumado pelas caganitas do rebanho vindo da Serra da Estrela.
O ano tinha sido estéril e os milheirais sepultaram-se na folhagem seca, logo à nascença.
Nossa Senhora da Ouvida tinha abandonado o povo da aldeia nas súplicas das novenas. As lágrimas choradas pelo manto sagrado, não caíram em cima da terra árida e a fome corria dormente, como um rio seco.
Tia Maria inchou os ossos de argila do forno com giestas e urzes molhadas e a esperança elevou-se nas telhas de ardósia.
As pernas ondulavam de cansaço na rotação dos planetas.
A alma suspirava de emoção.
O calor aqueceu todo o seu corpo, mais parecendo uma coroa acesa de espinhos.
No silêncio de um imenso repouso, ouvem-se ruidosos lamentos, ressoados nas labaredas que lhe ensanguentavam o rosto. Os olhos vermelhos arregalam-se num ato de misericórdia. Com as pálpebras humedecidas de suor, olhava o chão amassado pelo tumulto dos seus passos. O forno ansiava pela barriga cheia.
Tia Maria arregaçou as mangas e amaciou os calos na pá que era engolida pelo céu vermelho. Doze pães tomavam cor e sabor e o aroma era levado pelas asas do vento.
Os galos cantavam.
Os chocalhos do gado entoavam canções sem rimas no fundo da melancolia dos gélidos caminhos.
A porta de ferro, colada com a bosta das vacas, é arrancada com a força dos céus.
Imóveis, sorrindo na cinza cor de lume, contam-se as contas de um rosário. Um rosário que iria caminhar como um raio de luz, para tantas bocas famintas.
Tia Maria, mais uma vez, cozeu o pão que não tinha lugar nas prateleiras da sua casa.
Conhecia quantas mãos estendidas, choravam na aldeia. Essas mãos iriam ser lavadas com as gotas de amor, nascentes no sorriso da Tia Maria e na face de Jesus.
As águas das rochas há muito purificaram a alma da Tia Maria.
Os campos da serra há muito vestiram o coração daquela Mulher, tão caridosa com túnicas de linho branco...o branco puro elevado nos altares do Santo Graal.
Celesta Almeida: Autora do Texto