Belmira da Silva, nascida e criada na aldeia de Bigorne, há muito pousou na tranquilidade da morte.
Virgem nasceu.
Virgem permaneceu até ao dia, em que a Virgem Maria a cobriu com seu manto eterno.
Mas, quis Deus, que cinco filhos de uma irmã, falecida na hora do parto, fossem o sangue das suas veias.
A angustiante luta pelo pão, pelo caldo, pelo lume, levaram-na a saborear o generoso ar da serra bendita, debaixo de chuva ou de sol ardente.
Calcorreou aquele chão com a canastra do pão à cabeça e com o cesto das meias, de lã de ovelha, que vendia à busca do sustento de tantas bocas.
As ovelhas e as cabras, penduradas nas silvas, curavam-lhe as feridas frescas que embrulhavam na alma os mistérios da sua dor.
As mãos rugosas, calejadas em seda de afetos, choravam na lã, a crucificação do seu destino. Destino preto, como pretas eram as pupilas dos seus olhos…mas, maia florida renascida em cada primavera.
Sozinha, apertava numa corda que se não via e que lhe atava o coração, as orações de fadiga e melancolia. Trespassava os fios da trança com coragem e bravura, próprias de um ser abençoado pelo Altíssimo. Vencia o desânimo com penitência e sacrifício, fermentos da Cruz Divina que beijava todos os dias, ao deitar e levantar.
Os dias eram curtos demais.
O sino que tocava as Avé Marias e mandava recolher, escondia a luz do sol, mas trazia o brilho das estrelas que lhe nascia no olhar. Ao serão, amarrotava os novelos de lã, preciosas pétalas que lhe sangravam nos dedos.
Na fúria do vento, ecoavam vozes misteriosas, exaladas num perfume estranho que a atraíam para a vida. As flores silvestres, muitas vezes mortas e sem cheiro, ressuscitavam num rio de sol, alimentado pelo amor que brotava da sua essência. Um amor imensurável e abençoado repartido pelas suas cinco filhas adotivas e pela sobrinha neta, Filomena Pereira.
Professora, oriunda da aldeia de Peixeninho e a residir em Lamego, Filomena apanhava a carreira que saía da cidade, às cinco horas da manhã.
Descia em Bigorne e os seus passos levavam-na até casa da Tia Belmira que já a esperava com o lume aceso e o pucarinho de café em cima do borralho que lhe aquecia o corpo.
Depois…caminhava até Peixeninho, lado a lado com esta santa mulher, não fossem os lobos fazer-lhe uma espera amaldiçoada.
Filomena continuava seu percurso até Pretarouca, ao encontro dos alunos que a aguardavam sedentos de gestos ternos e Tia Belmira regressava de olhar perdido no espaço com o coração nas mãos.
O silêncio embargava-lhe as palavras e os pensamentos. Estranhos pressentimentos paralisavam-lhe os gestos e a voz. O medo da tragédia escondia-se no rosto desesperado. Entregava sua sobrinha neta a Deus e regressava a Bigorne iluminada pela fé de Cristo, arfando de cansaço e de emoção.
Filomena chorou de comoção, ao falar-me desta alma que a aconchegava no peito, nas noites em que com ela dormia na sua casa em Lamego.
Aquela mulher caridosa, ao deitar, benzia-se e no semi-silêncio sussurrava:
-Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos…
Depois…ensinava-lhe as mais belas orações. No final, quando o sono já pesava nas pálpebras, diziam em conjunto:
-Senhor meu Deus, não nos desampareis!
Abraçavam-se no escuro da noite e entre os cobertores, por vezes, fazia-se ouvir o eco de algum “gado ruim que se não quer na corte” . Tia Belmira apressava-se a disfarçar o tumulto dizendo:
Tantos sorrisos trocados.
Tantos segredos partilhados.
Tantas angustias choradas.
Tanta saudade…
até ao dia em que… As asas da morte esfriaram o sopro quente saído das entranhas daquela mulher e sepultaram-no no chão sagrado.
O céu chorava a cântaros. A benevolente senhora foi sepultada numa cova, inundada de água, que mais parecia o tanque da aldeia, onde as lágrimas da Tia Belmira, tantas vezes, procuraram consolo.
Não precisou lavar sua alma, pois esta era tão pura e alva, como o caixão que lhe serviu de leito eterno.
Hoje, perdura a nostalgia na sobrinha neta, Filomena Pereira que guarda religiosamente, numa fotografia e no pucarinho da cor do café, o amor desmedido daquela mulher que, Filomena acredita, continuar a olhar por ela no Céu e no silêncio eterno dizer:
Celeste Almeida: Autora do Texto