01 Feb
01Feb

O dia caminhou na escuridão das nuvens e na enxurrada lamacenta que lavava os tormentos da vida por viver. 

Arrastada nos passos lentos seguia, serra abaixo, Maria Teresa de barriga cheia.

Prestes a rasgar o ventre e cobrir a terra com sangue das veias, nunca soube o que era mostrar a "boca do corpo" a um médico.  

Perdida na ignorância, carregava o destino de um fruto, com o peso que lhe caia nos ombros.  

O moinho do Lugar da Levada esperava-a numa paisagem adormecida, há muito esquecida. Vivia no exílio coberto de silvas e heras, naquele pedaço de terra já desprezado, mas, renascido nas histórias de vida de Maria Teresa. Cansada, ofegante, deitando as tripas pela boca, apoiou-se nos grilhões enferrujados que lhe aprisionavam o corpo. Embrulhou as lágrimas no desfolhar das silvas e no arrepiar das pedras de lousa, que caiam no peito. Inibida na doçura da timidez, aconchegou-se no embalo da mó, que ainda guilhotinava restos de grão de milho.

 De repente... Sentiu as pancadas do rodízio na barriga inchada. As dores cicatrizavam na farinha que cobria o pó do chão. 

Estava confusa.  

Sentia-se morrer e sepultada naquela toalha branca.  

Perdida na desventura das súplicas, procurou encontrar o fio da vida. 

Que lhe estava a acontecer?!  

Qual a razão daquelas terríveis dores que iam e vinham?!  

Destroçada, nas raizes de uma paixão sentida alguns meses atrás, levantou os olhos ao céu e, sentiu-se perdida na inquietude do vento que lhe engolia a força.

 Saídas da "boca do corpo, as águas molharam as pernas e a saia de burel. O padecimento cresceu, à velocidade do medo ateado na planta dos pés. Toda a fortaleza encantadora das suas vísceras varreu-se nas gotas do desespero. Não via nada para além dos mistérios da vida. 

Emergida no sofrimento, retorceu-se nas ondas que rodopiavam nas telhas de ardósia…  

Estas sussurravam cânticos melodiosos, cristalizados no sal das lágrimas que lavavam os cabelos enguiçados pelo turbilhão de incertezas.  

Maria Teresa percebeu, enfim, que tinha chegado a hora. A hora por ninguém anunciada. A ausência apertava-lhe a mão aberta… Estendeu, na pedra dura e fria, a capucha. Ajoelhou-se. Abriu as pernas. Colou-se à porta rota do moinho e, foi buscar forças, nunca soube onde. Puxou, puxou no limite do impossível.  

Um grito ecoou pelas colinas e amedrontou as rolas.  

Um rato despertou do sono.  

Uma aranha desprendeu-se da teia, com um pingo de chuva.  

A barriga pariu numa explosão de mistérios. 

Uma criança chorou.  

Era uma menina...  

O rodízio parou.  

A mó calou-se.  

As margens do ribeiro sorriram. O horizonte da serra rendeu-se aos soluços vindos do corpo e da alma de Maria Teresa. 

Um novo despertar mergulhou no berço feito de folhas de memórias, segredos e saudades contados, hoje, à sua filha Maria Clara, prestes a parir...

Celeste Almeida: Autora do texto

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