Era uma vez, uma menina que nasceu numa linda aldeia de nome Canedo do Chão, freguesia e concelho de Mangualde.
Canedo do Chão
Vivia numa grande casa com paredes de pedra e muitas janelas.
O berço que a embalou, era o mesmo berço que embalou a sua irmã mais velha e todos os seus irmãos.
Tantos manos e manas!
Quatro rapazes e quatro raparigas paridos naquela enorme casa que ficou pequenina, durante muitos anos e depois, ficou grande, muito grande, cheia de vazio e solidão!
Aquela menina nasceu com os cabelos muito louros, tão louros que a chamavam na aldeia a “lã branca”. Este nome que sempre a acompanhou, serviu para os coleguinhas na escola a provocarem! Sim, provocarem, porque ela não gostava nada de ser chamada assim!
A menina foi crescendo. Via seu pai sair antes do nascer do sol todos os dias e regressar já com as estrelas no céu! Quando regressava, seu pai, de nome João, gostava muito de lhe pegar ao colo e de a erguer aos céus, dizendo,
“A minha Letita é a luz dos meus olhos e tem os cabelos da cor do sol"!
Havia um ritual que a menina fazia!
Ao ver seu pai chegar do trabalho, corria para ele e, juntos, subiam as escadas de pedra em direção à cozinha, apertando-lhe a mão cheia de calos. E a sua pequenina mão ficava colada à do seu progenitor. A mão que todavia a protegeu e no silêncio dizia:
“Nunca esqueças, filha, sempre que fores a cair, minha mão será teu amparo."
Surpreendente! Porque ficava a mãozinha frágil daquela menina, coladinha à do seu paizinho? Seu pai era resineiro e suas mãos vinham cheias de resina que parecia cola! Enquanto não fossem lavadas com aguarrás, comprada especificamente para isso, aquela menina apertava com toda a força a mão daquele Homem, o Homem mais maravilhoso que alguma vez conheceu. O amor que lhe tinha, ia da luz do candeeiro de petróleo que iluminava a escuridão, até à lua que, por vezes, iluminava a noite.
A menina chamada na aldeia de Letita ou Letinha, não era diferente das outras crianças. Brincava na rua descalça. Amassava o pão e os bolos, misturando terra com água e cozia-os no lume apagado entre duas pedrinhas. A casinha de brincar tinha o teto feito de um pedaço do céu e as paredes construídas com as pedras do mundo. Varria-a com uma vassourinha de giesta. Ia à fonte buscar água com uma folha de couve.
Em suma, fingia que era uma dona de casa, dona de casa que a mãe lhe ensinou a ser com nove anos de idade!
Com essa idade, ia lavar a roupa ao tanque e estendia-a no lenteiro a corar. Acartava cântaros de água que enchia na fonte. Passava a roupa com um ferro a brasas. Cozinhava, à lareira, numas grandes panelas de ferro.
Certo dia, a lareira deixou de existir. No seu lugar passou a haver, um grande fogão a lenha.
Ai, que saudades, tem a menina, do pãozinho da manhã! Metia-o no forno do fogão, deixava-o lá alguns minutos e depois, punha-lhe manteiga Vaqueiro. Numa malga, misturava leite com café. Que bem lhe sabia a primeira refeição do dia! Vivências tão cheias de sabor daquela menina, da menina que ficou no tempo! O tempo que corria!...
Quando entrou na escola, as suas brincadeiras mudaram!
Passou a ser professora!
A escola era num cantinho da sala de sua casa e os alunos eram o Jorge e a Irene, seus irmãos mais novos! O quadro era a lousa, os livros eram os livrinhos que levava numa saquinha de pano para a escola e sem nada saber ainda, ensinava a ler e a escrever os “alunos” que obedeciam às suas ordens, sentadinhos no soalho de pinho! Um soalho muito amarelinho que a mãe esfregava todos os sábados com sabão amarelo!
Mais tarde, o soalho mudou. Era de tacos e quando se punha cera e se puxava o lustro com um pano de lã, aquele chão parecia um espelho a refletir o corpinho da menina!
-Cuidado, filha! Não corras que o chão escorrega! Levou cera nova. dizia-lhe a mãe.
A mãe, a sua mãezinha, a sua Rainha Albertina que durante o dia cuidava da casa, das refeições, cultivava as terras e desafiava o cansaço e as agruras da vida.
A mãe que à noite, quando toda a casa dormia, costurava as roupinhas para vestir seus oito filhos!
Às vezes, pedalava com um pé a máquina de costura e com o outro embalava o filhinho que chorava no berço!
Chorava o filho e chorava a alma daquela mãe que nunca conheceu outra coisa, a não ser o trabalho para combater a miséria árdua daquele tempo de outrora.
Aquela grande Mulher, tão pequenina no tamanho, tinha um colo maior que o universo, onde cabia toda a sua família e todas as pessoas que dela precisassem! Uma força da natureza que abraçava com o coração os mais necessitados!
Voltando àquela menina! A menina tinha um desejo! Adormecia e acordava com aquele desejo no pensamento!
Quando fosse grande, queria ser professora, como a sua irmã mais velha.
E foi professora, sim!
Tantos sacrifícios fizerem seus pais! Eram outros tempos e continuar os estudos após a quarta classe, exigia muita despesa! No entanto, seu pai dizia que preferia deixar um curso aos filhos do que uma grande quinta!
O dia em que a menina, depois rapariga, se formou em professora foi o dia mais feliz da sua vida! Não cabia em si de contente e esperava ansiosa o mês de outubro para ter a sua escolinha e os seus meninos!
Não importava onde, aquela professora só desejava ter a sua escola e as suas criancinhas!
Chegou o mês de outubro do ano de mil novecentos e setenta e cinco e a professora, muito jovem, foi ao encontro dos seus meninos!
Uma aldeia da Serra do Montemuro, esperava-a! A aldeia de Ramires.
Aldeia de Ramires
Era uma aldeia muito isolada, com as casinhas cobertas com colmo, as ruelas muito estreitas entapetadas com caganitas dos rebanhos e bosta das vacas!
As pessoas tapavam os rostos com as capuchas de burel, principalmente nos dias em que o frio enregelava os ossos e a carne!
Era uma aldeia que parecia um cenário de um filme fantasmagórico! Situada bem no interior da Serra do Montemuro, não tinha estradas e a professora tinha que andar horas a pé por montes e vales, sempre que precisasse ir à vila de Cinfães às reuniões dos professores, ou precisasse de comprar algum bem essencial!
Vila de Cinfães
Ir visitar os seus pais e irmãos, nem pensar fazê-lo assiduamente! Só nas férias, porque transportes não existiam, a não ser uma carreira que ligava Castro Daire a Viseu, apanhada nas Portas do Montemuro!
Naquele mesmo ano, a professora nunca entendeu o porquê de ser mudada para a escola da aldeia de Pimeirô, onde passou a viver naquele ano lectivo.
Aldeia de Pimeirô
Outro dia abençoado que um dia saberão porquê!
A professora que tanto queria uma escola com meninos, passou a ter duas escolas.
De manhã dava na casinha velhinha de Pimeirô as aulas e à uma hora, descia o vale para ir ter com os meninos de Ramires!...
Não, não digam coitadinha da professora!
Digam, sim, abençoado dia aquele, em que uma rapariga começou a escrever novos capítulos da sua vida!
Ir para o Montemuro, foi o maior tesouro que o bom Deus lhe deu!
A partir daí , a professora descobriu como se ama verdadeiramente o próximo!
Descobriu como se encontra Deus nas coisas mais singelas da vida!
Descobriu como se pode partilhar tanto, mesmo sem nada ter! Esse é o mundo, onde vive a professora!
O mundo povoado pelas Gentes mais bondosas que existem na face da terra
– O povo de alma e coração grande que a acolheu como se uma filha do Montemuro fosse!
Essa menina…essa professora, sou eu Celeste Almeida que enquanto Deus me deixar, viverei para o POVO e com o POVO , o maior património que conheço!
Celeste Almeida, a autora do texto