23 Sep
23Sep

(…) 

O homem corria como louco pelas ruas da cidade e os transeuntes que por ali circulavam, seguiam-no com o olhar, atónitos, sem entender o porquê de tamanha pressa. O trânsito fluía, denunciando a hora de ponta e, de vez em quando, um ou outro condutor via-se obrigado a frear com o indivíduo em fuga, a passar à frente dos carros. De repente, alguém gritou:   

“Vai ali! corram, corram… depressa!…” 

O sujeito aligeirava o passo, esgueirando-se pelas vielas mais estreitas, na esperança de despistar os guardas da PSP que lhe seguiam o rastro em grande alarido. 

Uma criança foi derrubada e uma senhora empurrada para a via pública e quase atropelada. 

Já perto do Centro Comercial Fórum Viseu, o suspeito viu um carro parado na via, com o motor a trabalhar. O dono precisara de levantar dinheiro na caixa multibanco que se encontrava do outro lado da rua, e não se dera ao cuidado de desligar o motor nem fechar a viatura por não tencionar demorar mais que alguns minutos. 

Sem pestanejar, o assaltante entrou no automóvel e arrancou, tomando a direção norte, pela autoestrada A 24. Percorreu mais de trinta quilómetros, conduzindo a alta velocidade para fugir ao alcance da polícia. Pouco a pouco, foi tomando consciência do seu estado, físico e emocional, e reconheceu ter descido ao mais profundo abismo da existência. 

Como chegara até ali e o que o levara a comportar-se como um bandido, não sabia, nem a si mesmo entendia.    

Que não tinha perdão, estava claro. Que lhe doía a solidão, também.  

À saída do túnel, reparou na placa que indicava – Castro Daire, Leste – e decidiu tomar a direção da vila, onde compraria algo para comer e beber. Agiria com naturalidade para não levantar suspeitas, acreditando que a notícia do ocorrido ainda não tivesse chegado àquele lugar. 

Estacionou em frente ao quartel dos bombeiros e procurou o bar que se encontrava mais perto. Entrou e foi direto ao balcão. 

O lugar estava vazio. 

Apenas um casal de namorados conversava tranquilo a um canto da sala. 

Pediu educadamente que lhe preparassem duas sandes mistas, de queijo e presunto, para levar, juntamente com duas latas de cerveja, bem frescas. 

Enquanto esperou, foi bebericando um café, olhando, de vez em quando, para a porta de entrada do estabelecimento, receoso de ser descoberto. 

Minutos depois, já a empregada lhe entregava o saco dos mantimentos e o talão da despesa. 

Retirou a carteira do bolso das calças de ganga e reparou que estavam ensanguentadas um pouco acima do joelho esquerdo.    

Estremeceu.    

Pagou a conta, segurou no saco e saiu para a rua, dirigindo-se apressadamente para o carro. Entrou de rompante na viatura, inverteu a marcha e seguiu pela estrada nacional 225, sem rumo certo. Precisava esconder-se, não apenas da polícia, mas de si e do mundo. Olhou o relógio. Estava na hora de forrar o estômago. 

O crepúsculo desceu sobre as montanhas, anunciando as sombras da noite que já se projetavam para lá do horizonte. A Lua foi surgindo devagar, cheia e esplendorosa. Parecia grávida na sua plenitude. Com toda aquela luzência, esperava que o não denunciasse. 

Onze horas da noite e sem saber que rota seguir. 

Por esta altura, já todas as rádios e televisões passavam a notícia sobre o ocorrido na cidade, denunciando-lhe o estado de foragido.    

Teria que abandonar a viatura e seguir a pé. O depósito do combustível entrara na reserva havia algum tempo.    

Logo ficaria pelo caminho. Além disso, era também objeto de investigação policial.    

E as duas mulheres?  

Que lhes teria acontecido?  

Seria realmente um assassino? Sentia-se mal só de pensar nessa possibilidade!... O golpe que desferira fora superficial… 

Ou não? 

Agora atormentava-se com a ideia de ter matado uma inocente. Temeroso, pedia perdão a Deus pelo monstro em que se tornara. 

A gasolina acabou e o homem parou a viatura perto de uma aldeia em ruínas, situada no sopé do monte.

Não conhecia o lugar. Umas poucas casas de granito, erguiam-se como fantasmas no negrume da paisagem. 

Habitadas ou não, as velhas casas pareciam fazer parte de um postal ilustrado, um lugar deserto e obscuro que o homem achou fantasmagórico, comparando-o às aldeias de fronteira que alguns escritores decidiram imortalizar nos seus contos e nas suas histórias lendárias. 

Miguel Torga fora um deles.    

Ali estava o pequeno cemitério, com os túmulos enfeitados com flores de plástico, anacrónicas, simbolizando o comum a todo o mortal 

– A prova de que nada nem ninguém resiste ao tempo.   

A brisa noturna afagou-lhe a face, provocando-lhe calafrios. A lua brilhou ainda mais intensamente, alertando para a presença do intruso. Sentiu a pele arrepiar e o sangue a gelar nas veias.   

“Mas que raio se passa?” ...  

Sussurrou baixinho, perturbando aquela atmosfera, tenebrosa e horripilante

Quis correr, sair dali, mas algo o prendia ao lugar.   

Caramba… Afinal que se passa? Sou lá homem de ter medo!… Hum… Nada disto vai além da minha imaginação…”  

E encetou a caminhada pelo monte, até chegar a um pequeno bosque de pinheiros mansos, perfumados, que enquadrava no mesmo cenário, um corgo de água doce e fresca. Saciou a sede e esgueirou-se para dentro da vegetação. Ali, ninguém daria com ele. Poderia descansar em paz por algum tempo. 

Deitou-se na caruma seca, de barriga para o ar. Respirou fundo e deixou-se ficar a admirar o céu polvilhado de estrelas. Adormeceu em poucos minutos, vencido pelo cansaço. 

Despertou com a picada de um mosquito e uma estranha sensação envolvendo-lhe a alma. 

Tinha o peito dorido pelo peso da ansiedade. 

Talvez, estivesse apenas cansado!…  

Indagou a ambiência intimidante da escuridão e escutou um ruído. 

Algo ou alguém se aproximava.  

Ficou quieto, sustendo a respiração. Virou a cabeça lentamente, uma e outra vez, tentando perceber de que ponto estaria a ser observado.

“Meu Deus!” exclamou aterrado, enquanto um fulminante par de olhos surgia da penumbra.   

“Um lobo! Ó céus!… 

E agora, que faço?”    

Questionava-se mentalmente, enquanto tentava descobrir algo com que defender-se, sem conseguir, todavia, nem mexer-se nem abrir a boca para gritar. Todos os músculos estavam paralisados. 

O animal aproximou-se de beiças arreganhadas, provando que não temia o homem. O foragido engoliu em seco e passou as mãos pelo chão, procurando um pau ou uma pedra, mas ao rasar o solo, apenas sentia o arranhar da vegetação. O pavor de ser dilacerado ali mesmo, prendia-lhe os membros e as lágrimas toldavam-lhe o olhar. 

Pensou…   

“Talvez não se atreva a atacar-me!… A não ser que esteja esfomeado, o que será o mais certo. eu Deus!… 

Será que é só um? 

Como sair daqui?” 

Hesitou… 

Num ímpeto de coragem, ousou levantar-se, mas o bicho rosnou, furioso. Um uivo estridente cortou o ar gélido da noite, ecoando naquela atmosfera pesada e sombria. O homem estremeceu… 

“Será agora que vou pagar pelos meus pecados?  

Afasta-os de mim, Senhor! Não creio que me tenhais reservado uma morte tão horrível.  

Afasta-os de mim que eu prometo entregar-me às autoridades e pagar pelos meus crimes.  

Por favor, meu Jesus… liberta-me deste pesadelo! Por favor!...”  

E rezava…  

“Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome…” 

Um outro lobo se juntou ao primeiro. O luar projetava as sombras dos dois animais, sentados lado a lado, como que, vigiando, à espera da oportunidade para o assalto final. 

O vento acordou agitado. No seu balançar, os pinheiros pareciam sussurrar a triste sina do indivíduo. 

De repente, algo iluminou aquela mente, já de si tão perturbada…   

“Os lobos não se aproximam do fogo!… Vou fazer uma fogueira e espantá-los para longe…”   

Remexeu nos bolsos das calças. Depois, no da camisa, mas nada. Não tinha fósforos, nem isqueiro. 

“Agora dava jeito fumar! Mas, que faço?” questionou-se, não querendo entregar os pontos. 

“Tenho de afastar de mim os malditos lobos… Há de haver uma maneira…” 

Tinha de sair dali. Não podia acobardar-se. Era vital que tomasse uma atitude. No pior dos cenários, seria repasto para os lobos. Tremia como varas verdes, procurando na bruma algo que o ajudasse a atear uma fogueira. Os animais levantaram-se e aproximaram-se um pouco mais. 

“Já sei!” ...

Exclamou confiante, recordando uma narrativa sobre lobos que escutara casualmente no bar da terra. Apanhou, do chão, dois seixos brancos e começou a batê-los um no outro. Do impacto das duas pedras saíam centelhas de luz. 

Os lobos recuaram. 

A estratégia estava a resultar. Muito lentamente, encetou a marcha de volta, tomando o mesmo carreiro até chegar ao lugar onde abandonara o automóvel. A ideia era refugiar-se no interior do veículo, descansar um pouco e descer o monte, logo que clareasse o dia. 

Se bem o pensou, melhor o fez. Escoltado pelos lobos que, embora mantendo uma certa distância, o acompanhavam passo a passo, foi descendo devagar até chegar ao ponto desejado. Uma vez ali, bateu as pedras com mais insistência, de forma a criar um maior feixe de luz. Abriu, de rompante, a porta do carro e introduziu-se, qual flecha, no interior do mesmo. 

Os lobos aproximaram-se furiosos. Rondaram o veículo durante alguns minutos e não querendo baixar a guarda, sentaram-se e ficaram de vigia à presa. 

O homem observou-os do esconderijo e reconheceu estar metido num grande sarilho. Os animais não iam abandonar o local. Restava-lhe aguardar que amanhecesse e que algum dos habitantes da pequena aldeia o ajudasse a sair daquela enrascada. 

Recostou-se no banco de trás. Precisava refletir sobre a vida, principalmente em tudo o que lhe tinha acontecido nas últimas horas e que o conduzira àquela pesada situação. E a loucura que cometera… 

Sempre fora uma pessoa de bem, e agora… 

Seria um assassino? 

Ter-se-ia transformado num monstro? 

As lágrimas banhavam-lhe o rosto, ajudando-o à catarse. Estava decidido! Gritaria por ajuda logo de manhã, e desceria à vila para se entregar às autoridades. 

Um baque agitou-lhe o coração dentro do peito. Não se recordava de ao descer do monte, ter atravessado a aldeia fantasma, nem de ter passado ao lado do pequeno cemitério, como acontecera horas antes, mas estava convicto de que largara a viatura pertíssimo do local e de ter presenciado uma réstia de luz em, pelo menos, uma das velhas casas… tinha a certeza! 

Não estava doido. 

Ou estava? 

Não! Tinha a certeza de ter atravessado as casas em ruínas e de ter visto uma luz ténue que chegava do interior de uma delas… 

Ou de duas!… 

A dúvida assombrava-o. 

Estaria a perder a sanidade mental? 

E que estranha sensação era aquela que se apoderava do seu corpo e lhe dava volta à barriga, provocando-lhe cólicas terríveis e a vontade de defecar? 

Estava apavorado! 

Ou saía do carro para evacuar no monte, ou borrar-se-ia todo… 

Mas, como afastar os lobos que continuavam de sentinela? 

“Perdido por cinco, perdido por dez…” 

Sussurrou numa voz cortada, denunciando o pavor que sentia pela possibilidade de ser atacado. 

Num rompante, abriu a porta do carro, desceu as calças e aliviou-se ali mesmo. 

Os lobos nem se mexeram. 

Um terrível calafrio percorreu-lhe a espinha. 

Assustado, enfiou-se rapidamente dentro do automóvel e trancou as portas, não fosse o diabo tecê-las e ser surpreendido por alguma alma do outro mundo… 

O vento rumorejou… 

“Lua cheia!” 

Exclamou, alcançando com o olhar o iluminado satélite. 

Os lobos pareciam estátuas inertes, refletindo as sombras no chão. 

Da penumbra, surgiu, aflita, uma figura estranha, quiçá, humana, correndo, como se fugisse de uma qualquer perseguição. 

De repente, estancou, como se pela frente tivesse um enorme abismo. O espectro uivou, fixando a lua, e o seu silvo ecoou no horizonte, cortando a noite como lâmina de Samurai que se prepara para a mais terrível e sangrenta batalha, enquanto a pele se lhe rasgava e o corpo se transformava num outro, de dorso peludo, presas afiadas e beiços salivantes. 

Sentindo o odor da caça, farejou calmamente o lugar. De olhos semicerrados e focinho quase rasando o chão, foi-se aproximando devagar. Num impulso, voou sobre a presa e desferiu-lhe um golpe fatal… 

Aaaahhhhh… Aaaahhhh… Socooorroooo…  Socoooorrooo…”  

Gritou o fugitivo, despertando do terrível pesadelo que tivera durante os poucos minutos em que se deixara adormecer. Enfiou o rosto entre as mãos e murmurou:   

“Ó pá… Que cena maluca! Que coisa estranha!” 

Não percebia nada do que se estava a passar naquele cenário pesado e obscuro. Decidiu, no entanto, que se manteria desperto até ao raiar da aurora, não fosse o pesadelo ter continuidade e acabar sendo devorado por tão bizarra criatura. 

Terrivelmente assustado, Jorge Mendes não conseguia perspetivar como sair de toda aquela enrascada. Estava sozinho, num lugar ermo, dividido entre o sonho e a realidade. 

Reconhecia o quanto tinha falhado, não apenas como marido, mas também como membro de uma comunidade.  

Tornara-se um mau-caráter, uma pessoa vil. Não merecia compreensão nem misericórdia. Tentou imaginar o que vizinhos e amigos diriam dele naquele momento e desejou morrer, desaparecer para sempre, mas era demasiado cobarde para pôr fim à vida. 

Restava-lhe uma saída: cumprir o propósito de se entregar às autoridades, logo que o dia raiasse. Apenas uma coisa lhe martirizava o espírito… descobrir a verdade dos factos e ter a certeza de que não se tinha transformado num verdadeiro assassino. 

Só essa certeza lhe traria a paz necessária ao verdadeiro descanso. 

Fixou a lua e percebeu-se um barco encalhado na noite, de velas rasgadas e casco roto, prestes a afundar no vendaval de acontecimentos que ele mesmo provocara. 

Decidido a mudar de vida, recordou José Régio no poema “Cântico Negro…”   

“(…) 

A minha vida é um vendaval que se soltou. 

É uma onda que se alevantou. 

É um átomo a mais que se animou… 

Não sei por onde vou, 

Não sei para onde vou, 

Sei que não vou por aí!” 


In “ROSAS BRANCAS – Romance, chiado Books, 2016

Dulci Ferreira, a autora do texto

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