Estou cansada, muito cansada!
Eu sei que não reparam em mim, sei que não sabem onde vivo, mas eu estou aqui!
Aqui, na minha casa, na casa que há muito fechou as portas e janelas! A casa onde a luz do sol deixou de entrar!
Eu sei que nunca me viram, mas eu existo, acreditem!
Existo nas minhas memórias que pintaram meu passado com as cores das urzes e giestas em flor!
Existo nas minhas memórias que ladrilharam meu trilho com o aveludado do musgo!
Existo nas minhas memórias escritas nas rugas e aspereza da minha pele, com canetas calejadas molhadas no suor do meu trabalho.
No mundo, sempre tive pouco, mas nunca precisei de mais nada!
Acendia o lume todos os dias. Às vezes, acabavam-me os fósforos e eu não tinha dinheiro para comprar outra caixa, mas acendi sempre o lume!
Querem saber como?
Pegava no testo da panela de ferro e ia à vizinha! Bastava eu dizer,
" ó vizinha dê-me duas brasas, por favor"
e a Leonor dava-me quatro!
Sempre tive pão na arca, mesmo que não tivesse farinha para cozer nova fornada!
Bati, tantas vezes, às portas aqui na aldeia e, vim sempre com uma broa abraçada contra o peito! Depois, quando eu tivesse farinha cozia e devolvia o pão.
Sabem, às vezes, quase toda a fornada era para pagar as broas que me tinham emprestado.
Mas, sempre tive pão para dar aos meus filhos! Meus filhos sempre tiveram tudo que precisavam! Eu sei que a roupinha era toda remendada, mas ficavam tão lindos quando iam para a escola a cheirar ao fumo! Às vezes, eu ficava na rua a olhar para eles até os perder de vista e nos dias em que a neve cobria os caminhos, os socos deles deixavam os passinhos marcados e no meu rosto corriam lágrimas de felicidade!
Que lindos os meus filhos a irem para a escola!
Numa das mãos levavam uma saca de ganga com a lousa e o lápis de pedra, na outra a saquinha de linho com a bucha para comerem à hora do meio dia. Tinham tudo, tudo que fez deles uns grandes homens, porque o bercinho com a enxerga de palha, sempre os embalou com muita humildade e dignidade!
Com a humildade fizeram-se trabalhadores de " pau e manta" desde crianças e com a dignidade semearam nos alqueves o único cereal que ano após ano, hasteava grandes bandeiras douradas, as bandeiras das suas conquistas nos terrenos áridos da serra!
Cresceram, cresceram no meio dos montes! Lavraram a terra com a força do arado.
Malharam o cereal na eira com a força dos braços. Desafiaram os medos das noites, quando iam ao moinho.
Tomaram banho nas águas do rio.
Rasgaram caminhos com o peso do corpo.
Ajoelharam ao toque das Trindades.
Fizeram o sinal da cruz com os dedos molhados na pia da água benta.
Rezaram, todos os dias, ao Senhor e agradeciam por terem tudo, tudo o que precisavam para viver.
E agora?
Agora, os meus filhos dizem-me ao telefone que não têm nada, que lhes falta tudo, tudo que precisam para viver!
E, ao telefone choram, choram comigo, porque já não somos capazes de sorrir, como fazíamos há um ano atrás!
Mas, a maior dor, esta dor que já me matou por dentro, é que eu não posso secar as lágrimas deles com o calor das minhas!
Esta sim, é a minha maior dor!
Por isso, eu estou cansada, muito cansada, nesta casa onde tudo é frio e vazio.
Olho e só vejo solidão, a minha e a dos meus filhos e netos que noutro país, se sentem tão sós!
Tenho uma caixa de fósforos na gaveta do armário, mas, já não vale a pena acender o lume!
Já não há ninguém para se sentar à lareira!
Só eu, mas eu já não existo!
Não há vida dentro de mim!
Só há amor, muito amor e não posso dar este amor aos meus filhos e netos que todos os dias me telefonam e dizem:
-Temos tantas saudades suas, querida mãe! Precisamos tanto do seu colo, avozinha!
Olho a lareira, há muito apagada.
Tem giestas e cepas secas entre duas panelas de ferro, mas meu coração está triste como a noite no alto dos montes, a noite sem estrelas e sem lua!
Estou aqui... com a lareira apagada e lá fora o vento sopra e chora com a chuva que cai na minha alma...
Celeste Almeida a autora do texto