-Ok! Talvez se nasça com o destino marcado!
– exclamava Maria Carolina, rezingando com a mãe Dolores, que lhe acenava com a vassoura de giesta, a mais usada naqueles tempos pelas mulheres montemuranas que, derreadas, tentavam manter bem varridos os soalhos de madeira das suas pobres casas.
A mãe regressara do campo horas antes, trazendo consigo um ramo de giestas verdes para fazer uma vassoura nova. A velha já estava seca e quebradiça. Serviria para acender o lume quando fossem horas de aquecer a comida que sobrara do jantar.
Dolores fazia sempre comida a mais para que desse também para a ceia. Assim, não precisaria cozinhar quando chegasse de dar a volta às terras de regadio.
Era raro entrar em casa antes das dez da noite, obrigando a família a cear tardiamente. A lida no campo não cessava a horas certas. Por vezes, a rega calhava de noite, quando as levadas eram partilhadas.
Carolina sentia o cheiro a verde e não desgostava. Amava a terra e a natureza, tal como as coisas simples da vida, mas queixava-se com frequência pela falta de utensílios modernos que lhe proporcionassem maior conforto na realização das tarefas domésticas.
Não seria já altura de a mãe comprar uma daquelas vassouras com cabo de madeira, fino e macio, que costumava ver penduradas na mercearia do tio Zé Costa?
Ali havia de tudo! “Ou quase tudo…” pensava a rapariga, sempre que entrava no estabelecimento para comprar o necessário: arroz, massa, umas gramas de colorau, ou mesmo, um franguinho para assar no fogão a lenha em dias de domingo.
Mas havia algo que lhe prendia ainda mais o olhar: os grandes frascos de vidro expostos em cima do balcão e que continham rebuçados, confeitos e uns sombreiros de chocolate que ela tanto desejava provar.
Infelizmente, o dinheiro nunca dava, ficando-se pela vontade. Quiçá, a sorte um dia a bafejasse?!
…
Carolina era a favor do progresso e da modernidade e não compreendia o marasmo que se refletia na maneira de ser das gentes da sua aldeia. Eram tão acomodadas, tão pouco dinâmicas!… Pareciam paradas no tempo.
Ah…
Mas ela não!
Um dia sairia dali e voaria para longe de tão pequena geografia. Conheceria outros mundos e seria alguém na vida. Não queria a mesma sorte das irmãs mais velhas, que traziam as mãos calejadas e sangrentas de trabalhar nas terras ao dia fora, ou de tanto cavar pedras e mato nas florestas do Estado.
Não!
Essa vida não era para ela.
Também não tinha qualquer intenção de passar a juventude a pastorear gado. Ainda se fosse só o da casa, mas era obrigada a juntar ao seu os rebanhos de algumas pessoas que não lhe mereciam esse sacrifício.
Porém, a maior revolta que trazia na alma era a lembrança do dia em que, por esquecimento, deixara as cabras da velha Purificação na loja.
Esquecera-se de verdade, mas o pai agredira-a com o cabo da enxada ao pensar que o fizera de propósito.
Como conseguira feri-la tão profundamente? Não pela pancada, pois não fizera mossa, mas pelo gesto violento na mais lata conceção da palavra.
Ferira-a no orgulho e vaidade de jovem adolescente.
Ferira-a e desiludira-a pelo que representavam um para o outro.
Não era ela a filha que mais amava e com a qual tinha maior cumplicidade?
Porquê uma atitude tão radical?
E logo por causa das cabras daquela velha horrorosa, que passava o tempo a falar mal de toda a gente, principalmente da sua família?!
Nessa altura experienciara sentimentos menores, de raiva e ódio.
Como é que os pais se deixavam abusar daquela maneira?
Porque se mostravam tão fracos e submissos?
Por necessidade?
“Sim, porque até a humildade tem limites!”
Pensava a garota, deixando aflorar memórias que lhe transtornavam o espírito. Enfim… fazer o quê, para além da revolta? Eram maneiras de ser que teria de aceitar e respeitar.
Naquela noite deitara-se furiosa, sem comer e sem dizer uma palavra.
…
Pela manhã ouvira o pai tossir. Sabia que tinha de levantar-se para ir para as aulas, mas não queria dar de caras com ele. Desta vez, não lhe daria os bons dias nem o beijo matinal, como sempre fazia. Fá-lo-ia sentir na pele a sua mágoa e deceção.
Percebeu, porém, que algo de anormal se passava, pois, o silêncio tornara-se ensurdecedor naquele pequeno espaço. Ouviu o pai tossir de novo e questionou-se sobre se estaria doente.
Estremeceu.
Era tão sensível e emotivo! Ter-se-ia sentido mal depois da atitude que tivera para com ela? Resolveu engolir o orgulho e ver o que se passava. Aproximou-se do quarto dos pais e bateu levemente na porta…
- Posso entrar? – perguntou baixinho.
- Sim, querida! Entra! – era a voz da mãe, pedindo-lhe que se aproximasse
- O teu pai não está bem! Parece nervoso e inquieto. E esta tosse… Mal dormiu de noite.
Não me sabes dizer o que foi que aconteceu?
Vá lá, Carolina!… Sempre te conta tudo!
A mãe sentia que algo não estava bem entre os dois. Nunca se largavam, eram confidentes um do outro, e o marido tinha até, uma declarada predileção pela filha mais nova.
- Mas que raio se terá passado e assim de tão grave?
– Resmungava Dolores, por entre dentes.
- Ainda estou para saber!…
- E chamou:
Carolina, faz companhia ao teu pai enquanto preparo um chá de tília para lhe acalmar a tosse!
A matriarca saiu apressada do quarto, deixando-os frente a frente. …
João não era assim. Nunca fora violento com nenhuma das filhas e não compreendia como o tinha sido agora, e logo com Carolina, a luz dos seus olhos.
Claro que amava igualmente todas elas, mas a maneira de ser da ‘caçulinha’, a sua destreza e irreverência, o seu enorme coração e a sua força, aliados a um elevado sentido de justiça, tornavam-na uma menina muito especial. Tinha tanto orgulho naqueles quinze anos de alegria e vivacidade!… Teria de pedir-lhe desculpas por se ter excedido e por tê-la ferido tão profundamente. Além do mais, ele sabia que a velha Purificação não passava de uma cobra que destilava veneno sobre a sua família por despeito e inveja.
Aliás, como muitas outras pessoas da aldeia que apenas lhe mereciam a mesma consideração.
Pensou melhor…
Na verdade, não tinha porquê continuar a sujeitar a filha a calcorrear montes e vales atrás de um rebanho enorme de gado quando de seu eram apenas umas poucas cabeças.
Como lamentava não ter posses para afastar a sua gente da pobreza e da necessidade de andar sob o jugo dos outros, trabalhando muitas vezes de sol a sol para que houvesse alguma reciprocidade. Toda aquela revolta fazia-o sentir-se mal.
Carolina tinha razão, contudo… fazer o quê, se a família cumpria o preceito de que se devia dar sempre a outra face, como Cristo o havia exemplificado?
- Carolina… lamento pelo que te fiz! Bem sabes que não sou assim.
Perdoas-me?
- Mas, pai… Juro que não fiz de propósito!
Acredite!
No entanto, não deixa de ser humilhante para mim passar as tardes pelos montes a guardar sozinha, um rebanho de gado que nem é nosso, enquanto os filhos dos donos, que são da minha idade, se divertem por aí ou ficam em casa a estudar.
Já eu…
Que tempo tenho para o fazer? Acha justo? E que agradecimentos obtemos dessa gente? Nenhuns. Ainda se acham melhores do que nós e se riem na nossa cara.
- Tens razão, querida! Está na hora de ajustar as coisas por aqui. Amanhã mesmo direi a cada um que tome conta dos seus animais.
Achas bem?
- É preciso exigir que nos respeitem, pai! Também você e a mãe se devem dedicar mais ao que é nosso e menos ao que é dos outros.
Ajudar, sim! Escravizar, não!
A filha tinha razão.
As pessoas abusavam da sua boa vontade, porque eram humildes e educados. Estava na hora de exigir algum respeito e consideração.
Carolina era forte, destemida e audaz e dotava-se de uma inteligência pouco comum. Não obstante, recusava-se aos estudos e o pai tinha um grande desgosto por isso.
Quantas vezes lhe perguntara porque não queria estudar se tinha tantas capacidades? A resposta chegava, entrementes, com algumas farpas afiadas…
- Já lhe disse que não tenho tempo para estudar e nem me enquadro no sistema! Há muita coisa por ali com que não concordo!
“Por ali” era o antigo liceu de Castro Daire que se situava onde atualmente é o mercado municipal.
- És rebelde, isso sim! – respondia-lhe o pai, algo agastado com a sua teimosia – E lamento, sabes? Sei que poderias chegar longe!…
Poderia sim, se voltasse atrás no tempo e a isso se propusesse. Todavia, nem os estudos concluíra, preferindo começar a trabalhar no duro, arcando com os sabores e dissabores que advêm do assumir responsabilidades e do ser capaz de se sustentar a si própria e de participar nas despesas da casa, aliviando os ombros do pai que, por infortúnio, perdera o emprego e viera, depois, a ficar com uma reforma de miséria.
João era um artista. Trabalhara durante anos como calceteiro na cidade de Viseu.
Algumas das mais belas calçadas decorativas que por lá existem nasceram às suas mãos.
Sempre descontara para a Segurança Social, mas os seus descontos nunca entraram por inteiro nos cofres do Estado, embora por inteiro saíssem do seu ordenado.
Viseu tornara-se uma cidade apelativa.
Noitadas e copos, jogo clandestino e mulheres de má vida levariam o patrão a falir e a destruir o próprio lar.
João nada podia fazer a não ser lamentar.
Era amigo íntimo da família e Carolina chegara até, a passar férias com os filhos dos patrões, que eram mais ou menos da mesma idade.
Mais uma família destruída.
Mais uma família lesada.
- Coisas do destino! - diziam alguns.
Mas Carolina acreditava no livre-arbítrio.
Cada um escolhe o seu caminho.
O patrão do pai escolhera destruir a família ao enveredar pelas sendas obscuras da noite.
E ela escolhera o seu, preferindo o trabalho aos estudos.
O pai chorou por ela abandonar a escola, mas Carolina levou a sério a decisão e não voltou atrás.
…
Muita gente acredita que se nasce com o destino traçado. Tudo o que acontece já está, de alguma forma, predestinado.
Perante esta perspetiva, onde se encaixa o livre arbítrio?
Acontecimentos inesperados mudam o rumo das coisas, obrigando as pessoas a trilhar novos caminhos.
João e Dolores libertaram-se do jugo da sujeição e foram muito mais felizes.
A vida é um projeto em permanente construção. Se uma porta se fecha, uma janela se abre. Caminhos ramificam-se e cruzam-se. As possibilidades multiplicam-se e fazem-se escolhas. E Maria Carolina sabe que apenas uma certeza acompanha o ser vivente:
A de que nasceu para um dia perecer.
Imagem: Tia Beatriz – Aldeia velha de Bustelo – Castro Daire

Dulci Ferreira, a autora do texto