Naquele dia, caminhavam todos cabisbaixos, ouvindo-se o sussurro das Avé – Marias, quando os homens que seguravam nas asas do caixão, viram a cabeça do morto ao pendurão.
A madeira tinha partido e não lhes restava outra solução, que não fosse amarrar o caixão com um nagalho feito de giestas. Com cuidados acrescidos não fosse o morto sair de novo, deram continuidade ao cortejo, passando por Vilarinho, Minhões, Portela, lugar de novo responso, Vista do Rio e finalmente Ferreiros. Aqui era celebrada a missa e o corpo ia a enterrar no cemitério da freguesia.
Acontecimentos lamentáveis, infortúnios, desditas aconteciam muitas vezes, consequências das condições funestas em que vivíamos.
Se houvesse vias de comunicação e um telefone, será que algumas mortes não teriam sido evitadas?
Perguntas que ficam no ar, mas que são tão pertinentes!...
As famílias eram muito numerosas, porque a palavra pilula era invenção do diabo! Ai de quem se atrevesse a tomá-la! Ia arder nas profundezas do inferno, assim pregava o senhor pároco na homília!
A senhora Clarinda foi uma das mulheres que mais crianças deitou ao mundo. Os filhos vinham uns atrás dos outros, mas como dizia o povo e muito bem, “pontapé daqui e pontapé dali”, tudo se cria!
Dois deles, o Alpoim e o José Maria eram meus alunos. Foram criados como, salvo raras exceções, todas as crianças da terra! Crianças paridas em casa, com uns panos a servirem de fraldas, a crescerem sem sonhos, de pés descalços, roupas remendadas e as mangas cheias de ranho com que assoavam o nariz. Com apenas quatro ou cinco anos, começavam a trabalhar.
Levantavam-se cedo quer fizesse chuva ou fizesse sol para ajudarem os pais nas rotinas diárias. Às nove horas já estavam na escola. Cansados, lavados com terra e suor, ou com o frio a enregelar-lhes os ossos, sentavam-se na carteira silenciando a fome que lhes apertava o estômago.
Mas, volto à senhora Clarinda, uma das grandes vítimas do isolamento da aldeia. A senhora Clarinda pelas contas dela, andava no fim do tempo. No início da noite começou a sentir as dores do parto. Depois de tantos filhos paridos, era mais um que estava a chegar ao mundo, com a graça de Deus.
Aconteceu que a criança desta vez não saía. Inevitavelmente, não saía por mais força que a senhora Clarinda fizesse!
De nada valeu a ajuda da senhora Donzelina e chamar a mulher de Ferreiros que socorria nestes casos, eram horas de caminho a pé!
À procura de um milagre, as filhas mais velhas pegaram numa manta e dois troncos e fizeram uma padiola.
Quatro homens carregaram a senhora Clarinda e serra fora, com uma lanterna na mão a alumiar o pedacinho de chão onde mal pousavam os pés, correram arrebatadamente por entre montes cobertos de urzes, tojos e giestas, debaixo de um céu sem luar.
Em casa da senhora Clarinda a aldeia rezava o terço pedindo à Sagrada Família que os ajudasse a chegar a Cinfães, com a mãe e a criança vivos.
Celeste Almeida: Autora do texto