Olhou-a através do pensamento…
Não o queria demonstrar, mas era tão bonita e delicada, como uma rosa matizada que imenso prazer lhe dava apenas por lhe pensar… E tão livremente como o vento que por ele passava a cantar.
Poderia alguém proibi-lo de pensar no botão de rosa que acabava de beijar?
E tão livremente!...
Bastava fechar os olhos e, em seu corpo de musa inspiradora, repousar. Em seus lábios de cereja, a sua boca rasar.
Seria assim! E logo às narinas lhe assomava o aroma da flor do jasmim. E tão intensamente a podia possuir, como totalmente sua, a podia partilhar.
Há um verde-esperança que nela perdura, mesmo quando negro-cinza, bem escura, a teimam em pintar…
E lá estava ela, tão longe e tão perto que lhe podia tocar.
O corpo, ora pleno, ora deserto.
O olhar, ora dormente, ora desperto e ela, por vezes Sol ardente, por vezes luz fulgente, como o manto incandescente que a cobria ao deitar.
Olhava-a com o pensamento e sorria.
Ah… como queria ser terra e mar e o seu corpo ao corpo dela mesclar, qual acrílico ou aguarela com Meninas de Velásquez a dançar.
Queria tanto continuar aquele pensamento!… Ah… E sempre o mesmo desejo ao cair da estrela!...
Imaginou-a dançando, sob a luz remanescente do luar, ou mesmo do Sol poente, e de manhã ao acordar, a certeza do mesmo prazer sentir por podê-la respirar.
Fechou os olhos e aspirou a brisa doce que lhe acariciava o rosto e o beijava sem parar. Tinha cor, tinha cheiro e sabor e uma tremenda beleza. Tinha chão e raízes e ceifeiras a cantar e até o homem do cântaro que a sede lhes vinha matar de vez em quando. E Millet a observar. E o calor a apertar…
Olhou-a através do pensamento, uma vez mais… E viu homens a lutar, e crianças a morrer e tanta gente que a queria desgraçar.
Sem hesitar, olhou o céu e o seu corpo no corpo dela estendeu, implorando proteção ao Criador, porque, apesar de tão bela flor, havia nela muita dor, morte e desolação.
Deus a sua prece atendeu.
E a árvore floresceu, o rio seguiu o seu curso e o mar de tantos olhos se desvaneceu.
Fez-se luz, fez-se vida, fez-se Paraíso.
Olhámo-la distraídos. Bebemos o sangue das suas entranhas. Cantámos-lhe uma canção e, finalmente, lhe fizemos amor.
Pensar é questionar o próprio pensamento.
É refletir sobre as coisas, amadurecer ideias, rever situações.
O pensamento é livre.
Jamais alguém poderá interpor-se entre o pensar e o pensante. Impossível também limitá-lo.
In “Utopias do Pensamento-Entre o sonho e a realidade”- Chiado Books, 2018
Dulci Ferreira, a autora do texto