12 Dec
12Dec

- Mãe, onde estão os jornais que trouxe da taberna da tia Adélia? Tenho que fazer outros paninhos para o louceiro! Estes estão negros do fumo e rotos! 

- Estão no caixote da lenha, filha, vai lá buscar os que precisares.  

Quando se é criança, conseguimos rendilhar os mais estranhos sonhos, com a mesma facilidade com que se rasgam umas simples folhas de papel!  

Com a tesoura grande demais para os meus finos dedos, fazia recortes com as folhas muito dobradas para ficarem mais bonitos!  

Eram os paninhos de renda de outros tempos!  

Colocava-os nas prateleiras do louceiro e segurava-os com as peças de louça que andavam a uso. Sim, a uso, porque na sala estava uma guarda louça em madeira de nogueira, onde se guardavam dois serviços completos de jantar marca Sacavém, copos de vidro fino...e na parte superior toda envidraçada, havia dois serviços de chá que meus irmãos tinham trazido da Guiné que muito raramente saiam do lugar. Era uma loiça muito delicada. Ao mais pequeno toque partiam e, aos poucos, as chávenas com uma chinesa no fundo foram desaparecendo. 

O louceiro estava num canto da cozinha.

Lembro que para chegar ao cimo subia para um banco, chamado de mocho, levantava os pezinhos e esticava-me toda para ficar mais alta. 

Certo dia, o banco escorregou e eu fui bater com a cabeça na banca da cozinha. Era uma banca de pedra com um furo para escoar a água que caía para um balde de esmalte.

De repente, um hematoma enorme surgiu na testa.  

Meus pais ficaram muito aflitos, mas para me tranquilizarem disseram: 

- Filha, esta noite ninguém vai conseguir dormir!  

Esse galo que tens na testa vai cantar toda a noite!  

Ah, mas não pensem que lá em casa não se fazia renda! Aí se fazia! Minha mãe era uma sábia! 

Em criança frequentou a escola e fez a quarta classe.  

Coisa rara naquele tempo, para quem nasceu em 1923!  

Aprendeu a ser costureira com ela própria!  

Aos serões fazia a roupinha para os seus oito filhos! Com os dois pés pedalava na máquina marca Alfa. Foi a primeira que teve. Anos mais tarde, trocou por uma Singer. Durante a noite, quando toda a casa dormia, ouvia-se o som da máquina de costura e o som da tesoura a cortar os tecidos. Aquele som trepidante da máquina era a música que embalava o filho mais novo, deitado no bercinho a seu lado. 

Se a criança chorasse, minha mãe baloiçava o bercinho com um pé e pedalava com o outro.  

Claro que, também eu tive esse aconchego! Todos tivemos, enquanto bebés.

Minha mãe, aos domingos, não ia para os campos. 

Era pecado fazer trabalhos pesados no Dia do Senhor!  

Tantas vezes, ouvi meus pais contarem que as manchas que se veem na lua, é um homem com um molho de silvas às costas! Andava a cortar silvas num domingo e Deus pô-lo na lua para ser visto por toda a gente. 

Ditos que o povo contava e dos meus pais eu ouvi!  

No entanto, havia sempre trabalho. Minha mãe, nunca estava sem fazer nada! Com muita arte, fazia renda para os lençóis, para as toalhas, naperons para colocar nas mesinhas de cabeceira, nas cómodas, no bengaleiro, em cima da rádio, da televisão e fazia camisolinhas de lã para nós vestirmos! Andávamos sempre com lindas roupinhas que minha mãe fazia para oito filhos.

Éramos quatro rapazes e quatro raparigas! 

Hoje, dois rapazes e três raparigas! 

Fui criança no tempo dos louceiros, dos púcaros de barro, das trempes na lareira para se fazer o arroz com o feijão na caçoila! 

Estudei com a luz do candeeiro de vidro em cima da mesa. Havia uma candeia, mas essa nunca era usada junto dos livros! Qualquer descuido teria consequências graves. 

- Filha, leva o candeeiro, ainda adormeces em cima dos livros e incendeias tudo!  

Quando tiveres sono, deita-te e apaga o candeeiro.  

Não toques na chaminé com as mãos para te não queimares.  

Baixa a torcida com o regulador e assopra. 

Assim fazia. 

Com um sopro, apagava a chama da torcida alimentada por petróleo, mas nunca apaguei a luz dos olhos, daqueles que iluminaram sempre a minha escuridão. 

Os sóis e as luas corriam nas sombras. 

Eu crescia e comigo cresciam, lentamente, melhores condições de vida, fruto de muito trabalho dos meus pais. 

O candeeiro de vidro passou a ser um adorno. 

O louceiro carcomido juntou-se ao monte da lenha. 

O balde de esmalte furou-se e encheu-se de ferrugem. 

Aí, as voltas que a vida dá! 

Acreditam que, candeias, louceiros, baldes... voltei a encontrar nas aldeias da serra, alguns anos depois?  

Celeste Almeida, a autora do texto

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