31 Dec
31Dec

Depois da ceia, enquanto ajudavam a mãe a arrumar a cozinha, Carolina perguntou a Joana como iam ser as Janeiras naquele ano, se já tinha pensado nos versos e na moda que iriam cantar de porta em porta, tal como sempre acontecia. Joana falou que já tinha algo em mente e que na semana a seguir ao Natal reuniria com o grupo para ver se surgiam mais ideias. Ensaiariam o possível durante aqueles dias e se todos concordassem, cantariam as Janeiras logo no primeiro dia do ano. Carolina aquiesceu. 


… 

O que o grupo mais gostava era que lhes dessem peças de fumeiro, tais como salpicões e chouriças, porque rendiam mais, mas aceitavam tudo e de bom grado. 

Por vezes, chegavam a receber cabos de cebolas, castanhas piladas, dúzias de ovos, quilos de batatas e de feijão, frutos secos e outros bens que seriam leiloados posteriormente nas festas de Santo Antão. 

O dinheiro angariado servia para oferecer às crianças da aldeia um passeio de autocarro, já habitual em cada final de ano letivo, aproveitando para lhes dar a conhecer alguns lugares específicos e turísticos do país: o santuário de Fátima, o Bom Jesus e a Senhora do Sameiro em Braga, a Santa Luzia em Viana do Castelo, a Senhora dos Remédios em Lamego, a Santa Maria Adelaide em Arcozelo e ainda algumas localidades com edificações históricas, como Alcobaça, Tomar, Batalha, Mafra e outras onde existissem castelos e construções de interesse pedagógico, como por exemplo, museus. 

Estes passeios serviam como viagens de estudo para os miúdos e também para os graúdos que os quisessem acompanhar. 

Ah… e o mar… Para muitas crianças, aquelas excursões eram a única maneira de conhecerem o mar. 

Parte do dinheiro angariado seria também para investir em acessórios e adereços para as peças de teatro que periodicamente ensaiavam e representavam. 

As épocas de maior exibição eram o Natal, a Páscoa, a Festa de Nossa Senhora de Fátima, em maio, e o final do ano letivo, com direito a lanche e pequenas gratificações pela sua participação e bom desempenho durante o período escolar e catequético. Era também uma forma de os incentivar a fazer mais e melhor. Manter as crianças e os jovens ativos era, na verdade, o principal objetivo do grupo. 

… 

Fora uma semana intensa e nem sempre em concordância, mas entre as opiniões de uns e as ideias de outros, lá surgiu uma canção que no final agradou a todos.          

O primeiro dia do ano chegou num instante. 

A missa estava marcada para as nove horas. 

O grupo reunir-se-ia à porta da Igreja depois da liturgia dominical e, de imediato, dariam início ao cantar das Janeiras. 

Joana madrugou. Ao abrir o postigo, deparou-se com um cenário surpresa que ninguém previra para aquela manhã. Um forte nevão caíra durante a noite. A aldeia vestia-se de branco. 

- Carolina… vem cá! Olha pra isto… E agora? Que fazemos? Está frio e o ar pesado e húmido. Vai ser difícil cantar em todas as casas! 

Carolina esfregou os olhos, ensonada… estava tudo tão branquinho!… Se não fossem cantar as janeiras, aproveitaria para fazer ‘Sku’, que é como quem diz Esqui com o rabo sentado num saco de serapilheira ou de plástico. Já se via a deslizar sobre a neve até à fonte da bica. Por ali o caminho era sempre a descer. 

- É. A neve continua a cair, mas temos de ver o que dizem os outros. Por mim, aceito tudo! Se for para ir, vamos. 

Se for para ficar, ficamos. Resolve tu, mas talvez fosse melhor deixar para outro dia. 

Dia de Reis, por exemplo. 

Que dizes? 

- Miúda esperta! Já sabia que ias dizer algo do género. Se bem te conheço, já estás a magicar como tirar proveito da situação. Pois é! Mas se o tempo der uma trégua, vamos mesmo, ouviste? Não vale a pena acomodares-te! - retorquiu Joana. 

- Está bem! Será como decidires. Mas não me apetece nada andar na rua com este frio. 

- Vamos ver! - disse Joana um pouco desapontada. 

Depois da troca de palavras, dirigiram-se à cozinha, onde João e Dolores as esperavam para tomarem o pequeno-almoço: leite de cabra fervido e migado com broa de milho. Uma delícia! Nada igualava o sabor do leite acabado de ordenhar e lá em casa todos gostavam. 

… 

Depois da missa, a neve parou de cair e o grupo resolveu dar início à maratona. 

De porta em porta, foram cantando e recebendo as ofertas sem esmorecer. 

Carolina trazia os pés encharcados e frios como o gelo. 

A fome apertava e o cansaço também se fazia sentir. As capuchas de burel pesavam de tão húmidas. 

As gargantas fraquejavam. 

As coisas não estavam a correr como seria de esperar. 

Alguns membros do grupo pensavam em desistir, mas Joana persistia na ideia de continuarem… 

- Quando terminarmos a tarefa, vamos todos para minha casa. Aquecemo-nos à lareira e comemos uma sopa quente que vai saber pela alma. E olhem que ninguém faz sopas tão boas como a tia Dolores!… 

Perante esta perspetiva, o grupo continuava, firme e decidido. 

Houve quem os fizesse cantar e nada lhes desse. 

Houve quem lhes virasse as costas e nada dissesse. 

Houve ainda quem os aconselhasse a ir para casa, que o tempo não estava propício para passeatas e cantilenas e que podiam ficar doentes. 

Porém, a maior parte das pessoas eram generosas nas oferendas.

 … 

Nunca nada fora fácil para Joana, mas aquele dia estava a ser surreal. Carolina queixou-se que não aguentava mais. Queria ir para casa. Doía-lhe o corpo e a garganta. Já não podia cantar. Outros membros do grupo também se queixaram. Com a insistência de Joana, o que deveria ser feito com prazer tornara-se uma espécie de tortura. E ela não era assim. Porque insistia nos seus propósitos quando a opinião dos demais era diferente? 


- Joana, não é melhor deixarmos as casas restantes para outra vez? - perguntou Bernardino, o mais velho e sensato membro do grupo.

Bernardino era o rapaz do acordeão. Pedro tocava pandeireta. Nair ocupava-se dos ferrinhos. 

- Olha Dino, já faltam só meia dúzia de casas para terminarmos a tarefa. É pouco e ficamos despachados. 

Joana estava obstinada. Movia-a uma estranha e incompreensível força. 

- Está bem! Vamos lá! - assentiram os restantes membros do grupo. 

O sol espreitou por entre as pesadas nuvens. Joana sorriu e os olhos de Carolina brilharam. Todos ganharam maior confiança. A corrida era para levar até ao fim e a meta estava próxima. 

Chegaram à penúltima casa. Era antiga e ruinosa, mas sabiam que alguém a habitava. 


O sol voltou a esconder-se, as nuvens carregaram o céu e a neve recomeçou a cair. 

O lugar estava deserto e silencioso. 

Bateram à porta, mas ninguém deu sinal de vida. 

Uma galinha preta surgiu de nenhures e ficou debicando por ali. 

De vez em quando, ouviam-se umas risadas estúpidas, mas ninguém conseguia percecionar de onde vinham exatamente. 

Os jovens entreolhavam-se sem saber o que pensar da bizarra e misteriosa situação, decidindo que o melhor seria ‘zarpar’ dali…

Preparavam-se para a debanda quando, inesperadamente, um gato caiu da ramada que cobria o quinteiro, exatamente sobre Joana. Muito assustado, o animal cravou as garras na cabeça e no belo rosto da rapariga e arranhou-a ao ponto de a deixar desfigurada. Joana gritou aterrorizada e o seu desespero espalhou-se por toda a aldeia. Em pouco tempo, estava rodeada de gente. 

Carolina chorava ao ver a cara da irmã completamente ensanguentada. As pessoas olhavam a jovem agonizante, mas nada faziam. Pareciam em transe… letárgicas… 

- Mana… Mana… - chamou Carolina a chorar. - Como estás? Diz, por favor! Vamos à tia Palmira que ela cura-te as feridas. Vamos! Rápido! 

Ao ouvir a voz desesperada da mocinha, dois homens abeiraram-se de Joana, pegaram-lhe ao colo e levaram-na a casa de Palmira, que era uma espécie de enfermeira do povo. A mulher não possuía qualquer curso ou formação escolar, mas tinha um dom especial e colocava-o ao serviço da sua comunidade.

 …          

Os dias foram passando. Palmira deslocava-se diariamente a casa de João e Dolores para tratar das feridas de Joana. Geralmente, fazia-lhe os tratamentos com uma pasta de ervas medicinais, que ela mesma colhia com a ajuda de Carolina em alguns combros que ladeavam os pequenos corgos, e aplicava-a fresquinha no rosto da rapariga que ia melhorando a olhos vistos. 

Por esta altura, uma única preocupação toldava o pensamento da jovem:

 Como ficaria o seu rosto depois das feridas sanadas? 

Deixariam cicatrizes? 

Se deixassem… seriam superficiais ou profundas? 

Pareceria um monstro, assim desfigurada? 

Estas e outras questões provocavam-lhe uma ansiedade e uma angústia terríveis. Ainda bem que o espelho que existia lá em casa se partira. Só o pai tinha um pequeno que o ajudava a orientar-se quando fazia a barba. 

… 

O dia D chegou finalmente. 

Joana estava apavorada. 

Se ficasse feia, jamais se olharia ao espelho. 

Talvez nem tivesse coragem de sair à rua!… 

- Calma, querida! Vai ficar tudo bem. O trabalho que fizemos foi de mestre. Não fiques muito preocupada. 

- Tia Palmira… estou tão ansiosa, tão agoniada! Eu não merecia uma coisa destas! Porquê a mim, se éramos tantos? 

- Não sei, querida! Deus escreve direito por linhas tortas. Não é o que se costuma dizer? 

- Mas eu sempre estive ao serviço d´Ele… O que me propus fazer era, como sabe, para ajudar os mais novos. Se insisti que o fizéssemos naquele dia… sim, é verdade! Reconheço que o podíamos ter feito noutra altura. Mas você sabe como é difícil juntar o pessoal e estas coisas têm um tempo certo. 

- Vá… Não penses mais nisso! Vamos lá ver como estás… 

Palmira retirou lentamente os pensos e as gazas que cobriam o rosto de Joana. A partir daquele dia, teria de deixar as feridas terminarem de cicatrizar de forma natural. 

Quando terminou, encarou a moça de frente e disse: 

- Benza Deus que é mesmo teu amigo! 

As feridas estão limpas e não prevejo cicatrizes que possam vir a deixar grandes marcas. 

A mais profunda foi a do lábio superior, mas não deverá notar-se no futuro. 

Pelo menos, não muito! 

Daqui por uns tempos, o que passaste será apenas uma ténue lembrança na tua memória. 

- Obrigada, tia Palmira! Ser-lhe-ei eternamente grata! - respondeu com doçura. 

Joana estava feliz. Com o decorrer dos dias, pôde constatar que o terrível incidente não deixara marcas de maior. Porém, uma outra questão passou a ocupar-lhe o pensamento: se o animal andava sobre a ramada e se assustou com a chegada do grupo ou se terá sido atirado propositadamente de uma das janelas com o intuito de que caísse exatamente sobre a sua cabeça. Esta última era a teoria mais reconhecida por Joana, embora sem certezas e nada pudesse provar. Esperaria que o tempo trouxesse respostas e que as mesmas lhe viessem a dissipar todas as dúvidas. 

In “Pequenos Contos – Trechos de Realidades” – Chiado Books, 2020

Dulci Ferreira, a Autora do texto

Comentários
* O e-mail não será publicado no site.