05 Nov
05Nov

Imagem – Janela da Casa Grande (Casa Bento Amaral) – Farejinhas – Castro Daire

- Carolina! Queres vir cear comigo, hoje? – perguntou o velho Zé Prata que conhecia muito bem os gostos da sobrinha, no que respeitava aos prazeres gastronómicos. 

– Vou fazer cá um petisco!… 

- Não sei se posso, senhor tio! Terei de ver com a minha mãe. Mas gostava muito! Depois dou-lhe a resposta. Pode ser? 

- Está bem, miúda! Pergunta à tua mãe e depois diz-me. Tenho de fazer comida suficiente para nós dois. Bem sei como és gulosa! 

Carolina sorriu. Já era hábito acompanhar o tio na degustação de deliciosos pratos. Havia, entre os dois, uma cumplicidade que o homem não tinha com os próprios filhos, com quem era, por vezes, inflexível e ríspido.               

 … 

José era um tipo gordo e bonacheirão que vivia sozinho no casarão da família. De olhos azuis e pele clara, algo reativa nas faces, mais parecia um lorde inglês, estranho e misterioso, de quem as pessoas mantinham alguma distância. 

Dizia-se que descendia de uma família nobre que há muitos anos se radicara no pequeno povoado que a serra do Montemuro abraçava à distância. 

Serra de Montemuro

O casarão, talvez o maior e mais vistoso da aldeia, não apresentava brasão, mas tinha o aspeto arquitetural de um solar antigo, como muitos outros de que reza a história. Os nichos esculturais, lavrados na fachada principal, não deixavam margens para dúvidas. 

O resto da família residia na capital, onde José vivera e trabalhara durante largos anos, regressando à aldeia para se dedicar ao cultivo da terra, depois de se reformar. Por lá, deixara a mulher e os filhos, alguns com família constituída, que só visitavam o pai durante as férias. Ao que parecia, nenhum deles apreciava a vida no campo e os hábitos rurais.  

Aurora, a esposa, obrigava-se a andar cá e lá para acompanhar os filhos pequenos e não descurar demasiado do marido. Não era fácil. Apenas o que a vida lhe exigia para conseguir alguma harmonia familiar. 

… 

Carolina gostava de explorar os recantos do casarão. Sempre que possível, lá ia ganhando terreno, conquistando uma ou outra zona proibida. Muitos quartos e alguns salões, espaços de lazer e de trabalho e uma pequena biblioteca, o lugar de sua eleição. 

Ali teve contacto pela primeira vez, com Camões e Os Lusíadas; com Eça e Os Maias e A Tragédia da Rua das Flores; com Camilo e Amor de Perdição; com Gil Vicente e os seus Autos; com Ramalho Ortigão e a sua obra O Culto da Arte em Portugal; entre outros escritores clássicos, portugueses e estrangeiros.  

O que mais a confundia e estranhava era a ausência, naquelas prateleiras, de livros escritos por mulheres e ela sabia que as mulheres também escreviam. 

Certa noite, durante o jantar, questionou o tio sobre o porquê da falta de autores femininos nas suas estantes, mas José mudou o rumo da conversa, fingindo não ter ouvido a questão da sobrinha. 

Que talvez não valorizasse a literatura escrita por mulheres, foi o que lhe ficou a povoar o pensamento. A dado momento, o tio chamou-a para lhe fazer uma pequena advertência… 

- Olha, minha querida… Amanhã não podes vir comer cá a casa. Vai haver uma reunião de pessoas adultas na sala da cave e não quero que estejas por perto. 

- Tio… O que tem a sala da cave?  

- perguntou curiosa, aproveitando a oportunidade.  

- Nada de especial! É só um espaço de arrumos. Apenas me reúno lá com algumas pessoas para não as trazer aqui para cima. Entendes? 

- Está bem! Não se preocupe. - Anuiu. 

… 

Carolina fervia de curiosidade naquele fim de tarde. Prometera ao tio que não ia aparecer, mas estava difícil de cumprir a promessa. 

Se havia coisa que a intrigava, desde há muito tempo, era a sala secreta do casarão; 

O porquê de estar sempre fechada e por que, apenas de vez em quando, as portas eram abertas para as tais reuniões de que desconhecia o fundamento.  

Dolores reparou no semblante carregado da filha e na agitação que a perturbava, deduzindo não ser coisa boa o que estaria a magicar. 

- Que se passa rapariga, que não paras de bater o pé? Estás bem? 

- Estou, mãezinha! Não se preocupe. São só umas estranhezas minhas

- Vê lá no que te metes!… 

- Mãe, o tio disse que não me quer lá hoje por causa de uma reunião qualquer… Sabe do que se trata?  

Porque é que a sala da cave está sempre fechada?  

Já alguma vez esteve lá dentro?  

A mãe ficou preocupada. Sabia que se passavam coisas estranhas naquele casarão, mas nem a irmã e os sobrinhos tinham acesso a tal aposento. Mais que certo, era nem terem conhecimento do que se passava nas tais reuniões, que sempre que aconteciam, prolongavam-se pela noite dentro. 

… 

A tarde caíra vagarosa e aflitiva para a mocinha que decidira desobedecer ao tio e tentar descobrir o que se passava por detrás das grandes portas que davam acesso à sala secreta. E isto antes que acontecesse a tal reunião. 

A casa dos pais ficava relativamente perto, não se preocupando com as distâncias, no caso de ter que fugir do lugar. Escondeu-se na esquina da casa do vizinho, apreciando o comportamento do tio que escancarara uma das portas da sala, sempre com o cuidado de olhar por cima do ombro para ver se havia alguém por perto. 

Houve, porém, um momento em que encostou a grande porta e subiu ao andar de cima, altura que Carolina aproveitou para correr e adentrar a escuridão que o aposento encerrava. 

O coração batia forte, a boca estava seca, mas ela não podia voltar atrás.  

Assim, aproveitou para se esconder por detrás de um monte de sacas de serapilheira que se amontoavam a um canto do estranho lugar, e que mais pareciam fantasmas ondulantes pela luz dos candeeiros a petróleo. 

O tio entrou no salão sem se aperceber de nada. 

Ficou quieta…  

Se a descobrisse, ia zangar-se muito seriamente.  Em algum momento, voltaria a sair e ela aproveitaria a ocasião para abandonar o local.  

Mas não sem antes averiguar atentamente o que de tão misterioso escondia naquele lugar. 

De vez em quando, dava uma espreitadela.  

José organizava o espaço, retirando dos sacos de serapilheira uns objetos compridos, iguais ou parecidos com aquele que o velho Manel Ribeiro carregava às costas quando ia à caça. Eram armas de fogo, o que o tio encostava à parede, de forma exageradamente ordenada. 

Carolina palpou um dos sacos que se encontravam amontoados à sua frente. Pareciam cheios de roupa. Afinal, que lugar era aquele e que chefiava o tio Zé? 

Levantou o olhar e viu um quadro pendurado na parede com letras grandes gravadas. 

A custo, conseguiu ler… LEGIÃO PORTUGUESA.  

Nunca ouvira falar de tal coisa. Reparou que os sacos de serapilheira não estavam completamente fechados. 

Devagar, enfiou a mão dentro de um deles, retirando um barrete estranho de dois bicos e uma farda, tipo soldado, da mesma cor. Eram uniformes, ou fardas, indiciando que o lugar acolhia um exército de pessoas, com armamento e outros apetrechos de guerra. 

Olhou novamente para o quadro pendurado na parede. 

Mas que raio era aquilo da Legião Portuguesa?  

Se conseguisse sair dali sem ser vista poderia, num momento qualquer, questionar o tio sobre tal organismo. 

- Carolina! – chamou José com um tom azedo. - O que foi que te pedi ontem, miúda? Desrespeitaste a minha ordem e colocaste em causa a minha autoridade. Sabes o que mereces? 

- Peço desculpa, senhor tio! – disse, olhando o chão.  

– Sabe como sou curiosa…  

Não se zangue comigo, por favor!  

- Não sei porque sou tão benevolente contigo, rapariga! Devia castigar-te! 

- Senhor tio… gostava de saber o que é a Legião Portuguesa.  

Pode explicar-me, por favor? 

José desculpou-a. Era impossível ficar zangado com alguém que sempre se mostrava curiosa e interessada em saber mais sobre as coisas. 

Explicou-lhe que apenas emprestava o salão para que ali se reunisse um grupo de pessoas que, em conjunto com outros grupos do mesmo género, espalhados por outros lugares do país, constituíam a Legião Portuguesa. Se a porta estava sempre fechada, era para impedir que pessoas intrometidas e desobedientes, como ela, se magoassem com o material importante e perigoso que ali ficava guardado. 

Quanto à Legião Portuguesa, explicou-lhe que se tratava de um movimento nacionalista de índole religiosa, instituído pelo governo do Estado Novo, com a principal missão de proteger e “salvaguardar o património espiritual da nação”.

Os membros integrantes do movimento teriam que dar provas de que entendiam e estavam preparados para prestar esse fiel serviço à pátria. “Deus, Pátria e Família” era o lema principal do movimento. E rematou, para que a sobrinha melhor entendesse, que eram uma espécie de Escuteiros.

Um grupo de homens deu entrada no salão e José pediu à sobrinha que desta vez lhe obedecesse e voltasse para casa, acrescentando que em outro dia falariam melhor sobre aquele assunto e outros mais de que quisesse ter conhecimento.

Dulcí Ferreira In “PEQUENOS CONTOS – TRECHOS DE REALIDADES”, 2020.

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