Estávamos nos anos trinta do século passado. Vivia-se um período de persistência de tempo seco. Uma onda de calor invadiu todo o país.
Na aldeia de Casais do Monte, a aridez do solo esvoaçava no horizonte em nuvens de pó.
Camadas pulverulentas cobriam as folhas dos batatais com manchas descoloradas, tornando-as secas e quebradiças.
Tio Leonel aproveitou o silêncio da treva e dirigiu-se à mina sem dono.
Era meia noite e enquanto toda a aldeia dormia o primeiro sono, pegou na enxada, não fosse algum lobo atacá-lo e subiu a ladeira.
Ao passar junto à Ermida de S. Lourenço, ajoelhou nas pedras quentes e orou:
-S. Lourenço, mártir católico, preso e queimado vivo sobre o braseiro ardente, ouve as preces do Teu povo e faz cair a chuva abençoada. Não permitais que morramos à fome. Somos um povo que vive na pobreza e se nos tiras o pouco que angariamos, a aldeia, depressa, se torna num cemitério de corpos sem cova.
Olhou através das paredes, rezou três Pai Nossos e seguiu seu destino.
Arrastou os pés descalços na leveza dos pedregulhos, não fosse alguém ouvi-lo e atrás de si lhe desviar a água.
Ainda algum mato tinha que desbravar, viu luzes a rodopiar no ar. Ora se aproximavam dele, ora se afastavam. Os passos carregaram-se de pavor. O rosto empalideceu de pânico. O coração quase lhe saia do peito. O medo assombrou-lhe a alma.
Queria fugir, mas o filão estava cheio e as batatas a morrerem de sede.
Tinha que arranjar coragem no cabo da enxada e seguir seu destino.
Com os olhos cegos e a boca muda, acelerou o rasto na terra que sangrava no seu corpo.
Já bem perto do veio, viu cinco mulheres de negro vestidas e de rosto tapado. Dançavam e banhavam-se na água, desperdiçando o nectar do campo mirrado.
-Fora daí, mulheres do diabo!
Não esbanjeis a água, que toda ela é pouca.
Bruxas do demónio, saiam da mina!
Eu vou descobrir a vossa careca nem que seja a última coisa que faça na minha vida e dizer a toda a aldeia quem sois vós, malditas!
Palavras ainda não eram ditas, já o Tio Leonel era uma bola nas mãos delas.
Atiraram-no ao ar, empurraram-no para o chão, sempre ao ritmo de gargalhadas estridentes e canções maléficas.
Sentindo-o desfalecido, arrancaram-lhe toda a roupa, duas peças apenas, e lançaram-no para dentro da escuridão da nascente.
Tio Leonel apavorado, ainda conseguiu abrir a goela da mina, que de imediato secou no rego estéril. Arrastando-se no eco do silêncio, chegou a casa, desfigurado de medo.
-Ó homem, tu enlouqueceste!
Que fizeste à roupa , homem do diabo?
Agora sais vestido de casa e entras nu?!
-Cala-te, Clementina, cala-te, mulher!
Foram as bruxas que me roubaram a roupa.
Elas andavam à solta esta noite! Mas, olha que tu nada digas, porque nestas coisas, o segredo é a salvação.
Vamos dormir, que a manhã já vem alta.
Passaram alguns sóis.
A fome matou alguns animais e espalhou doenças nas pessoas.
Os mais idosos e as crianças foram as maiores vitimas.
Tio Leonel resistiu àquela desgraça, mas sucumbiu no peso da velhice.
A mina pereceu junto com ele!
Hoje, restam memórias contadas nos segredos da vegetação que na cor da esperança reza a S. Lourenço, que afaste a aldeia de Casais do Monte do braseiro que tantos sonhos queimou vivos.
Celeste Almeida, a autora do texto