Em tempos que já lá vão, reinava na Península Ibérica um poderoso jovem mouro de nome Abakir.
Seu sonho era conquistar terras e corações.
Apaixonou-se por uma esbelta moura, rapariga grácil que ficou retida no pensamento de quantos com ela lidaram.
Indiferente ao seu rei, refugiou-se num lugarejo sucumbido nos penedos guardiões do planalto da Ouvida, onde, segundo uma lenda, será travada a batalha final do fim do mundo.
Os dias, os meses, os anos, perderam-se na bruma dos tempos e conta-se que...
Na linda aldeia de Mouramorta, vivia uma velhinha de idade indefinida e olhar profundo.
Sua voz doce ecoava no espaço e na alma de quantos com ela lidaram.
Ninguém sabia dizer, quantas vezes o sol teria descido para se esconder atrás da Capelinha da Senhora da Ouvida!
Ninguém sabia dizer, quantos fins de tarde teriam adormecido nas contas de um rosário convertido nas linhas dos dedos!
Conhecida no lugar pela Santinha levantava-se pelo sol e com ele se deitava.
Salpicada de boa disposição iluminada por uma alegria interior, semeava a doçura dos favos de mel nas pedras da cama.
Numa noite, as ervas secas gemiam as suas agonias, quando algum animal rasteiro as pisava.
Os castanheiros e as braçadas das oliveiras sussurravam dores nas nervuras do limbo.
As cigarras cortavam o silêncio do crepúsculo adormecido no tenor dos grilinhos.
O luar batia em cheio no postigo, pedindo licença para acender a lamparina apagada.
O negrume da caçoila gritava que a hora tinha chegado.
A Santinha, de lábios entreabertos, tremia como vime açoitado pelo vento. Uma onda de calor subiu-lhe do peito e paralisou-lhe o sangue. Sem sentir qualquer sofrimento, morria na cinza ainda palpitante da lareira enlutada.
Passaram alguns dias no reflexo vivo da água da fonte.
As noites passearam de mansinho nos horizontes perfumados.
Na aldeia pairavam eflúvios mágicos e acordes de uma música vinda não se sabia de onde. Ao ritmo daquela divina musicalidade, os habitantes tiveram a mais fascinante das visões.
A Santinha jazia na cama abraçada pelos ramos e flores de uma roseira presa nas raízes do chão, que cresceu regada pelas saudades e alimentada pelo desespero.
Na penumbra do passado todas as suposições são aceitáveis, principalmente quando a voz simples do povo as imortaliza.
Imortal, ficou também aquele bálsamo exalado ano após ano no mês de maio e a musicalidade que se ouve nos sinos da Igreja quando tocam as Avé Marias.
É a Santinha que vem beber água da sua fonte.
A fonte da Santinha.
Celeste Almeida: Autora do texto