23 Jan
23Jan

Lá fora o frio era demolidor. A lenha do carvalho expandia luz e as labaredas subiam aos céus em forma de anjos. No interior da igreja, ouvia-se o arrastar dos passos em direção ao altar. O senhor padre pegava ao colo o Menino Jesus embalado por cânticos jubilosos, defumados no incenso exalado pelas palhinhas de feno. 

Era tempo de paz, tempo de esperança, tempo de amor.  

Maria Da Luz sentia a lenha queimar-lhe os pés. Já todos tinham beijado aquele rostinho de cabelos louros encaracolados e ela continuava de joelhos na pedra fria. 

Atrás de si, a flauta permanecia calada. 

-Ninguém mais quer beijar o Menino Jesus? -perguntou o senhor padre, quase ordenando. 

Maria enfiou a cabeça entre as mãos.  

Queria levantar-se, mas as forças faltavam-lhe.  

As pernas carregavam o peso da igreja.  

O coração vacilava o corpo no crepitar do passado.  

Os seus olhos encarregavam-se de dizer o que sua alma sentia.  

A flauta...a música, a mesma música que lhe secou as lágrimas, tantas vezes, entoava no horizonte e polvilhava a montanha com néctares divinos. 

No ar, os sabores dos sonhos libertavam-na da dor e da saudade que lhe corroía os ossos. 

Afinal, quem era aquele rapaz que caminhou para ela e permanecia, ali, tão perto de si? 

Seria o Ricardo?  

Os ecos das paredes da igreja murmuravam a ausência de quem nunca saiu do seu coração. 

Já lá iam tantos anos....  

Rezando, recordava outros natais... 

do tempo em que era feliz!  

-Bom, já vi que mais ninguém quer beijar o Menino! -repetiu o senhor padre, em tom acusador. 

A luz da estrela do presépio elevou-se no ar. Uma voz abeirou-se dela e sussurrou:

-Maria...a minha pastorinha da serra...  

Lá fora, uma flauta tocou...a flauta mágica que a levou até ao altar.  

Maria levantou-se, cobriu bem a cabeça com o véu bordado com bolinhas de nostalgia e caminhou, lentamente. 

Depois de breves segundos em silêncio, suplicando a Jesus o que ficou no segredo de Deus, curvou-se num manto cheio de esperança e, com devoção, beijou o joelho do Menino. 

A fogueira, no adro da igreja, era o espírito natalício.  

O aconchego...a partilha...a união.  

As chamas avivavam as memórias.  

Novos e velhos tropeçavam em tantas perguntas. Pareciam lobos esfomeados a devorar Ricardo que a todos atendia com um sorriso invadido de felicidade. 

Maria Da Luz apareceu à porta da igreja.  

Toda ela era luz...uma luz mais forte e intensa que a estrela de Natal. 

Ricardo leva a flauta à boca. 

Sopra notas que rasgam os céus... 

Notas que lhe secam as lágrimas que caem no chão... 

Lágrimas que enchem um rio de emoção.  

O telhado da igreja chora gotas cristalinas. O braseiro aquece o frio dos corpos.

Maria Da Luz anseia pelo calor de um abraço, na noite mais longa do ano. 

Queria acordar do sono que não dormia...!

Celeste Almeida, a autora do texto

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