O dia fora corrido e cansativo para dona Dolores que passara o tempo a tentar preparar maravilhosos petiscos para a ceia de Natal. Desde o dia anterior que dava asas à imaginação para que tudo se harmonizasse na noite de consoada. A reunião da família era o mais importante e tudo tinha de estar perfeito. A decoração da mesa ficara a cargo de Joana, que detinha um jeito especial para ornamentar os espaços. À sua responsabilidade tinha, semanalmente, os arranjos florais que decoravam os altares da igreja matriz.
…
Joana era a filha mais velha de dona Dolores.
Dotada de uma beleza rara, mostrava uma energia e uma vontade de fazer diferente, algo pouco comum entre as raparigas da sua geração. Graças à sua personalidade, forte e dinâmica, chefiava o grupo de jovens da sua aldeia, dirigia o grupo coral da igreja e o grupo de catequistas e ajudava na preparação dos atos litúrgicos, organizando cânticos e leituras. Para além de todas estas atividades, ainda dava catequese e junto com as irmãs mais novas, Rita e Carolina, apoiava o pároco da freguesia em dias festivos, acompanhando-o a outras povoações para cantar missas e abrilhantar festas de casamentos e/ou batizados.
Joana e o seu grupo de jovens preparavam para épocas especiais, como o Natal e a Páscoa, alguns espetáculos de variedades que incluíam pequenas peças de teatro, canto, dança e declamação de poesia, tal como a celebração de algumas tradições que não queria ver perdidas no tempo.
Mas esta maneira dinâmica de ser atraía, também, muita inveja e despeito por parte de algumas raparigas da terra que, além de nada fazerem, ainda criticavam quem dava de si em prol da comunidade.
Foram muitas as lágrimas que chorara, tantas vezes, pensando em desistir. Nos momentos mais complicados, pedia a Deus força e paciência para não esmorecer.
(…)
Na mesa, encontravam-se pratos com diversas iguarias:
Aletria, arroz doce, filhoses, rabanadas, pastéis de bacalhau, sonhos, fritas de chila e de abóbora, além de um cestinho com nozes, avelãs e passas que um dos sobrinhos de dona Dolores trouxera de Lisboa, sem esquecer os confeitos que Carolina comprara na mercearia de Benilde nessa tarde, e que serviriam para ela e Rita jogarem ao “Quantos queres?” depois da ceia.
Ao meio, um belíssimo arranjo floral feito de azevinho e pontas de cedro. Tudo como mandava a tradição.
Apesar de toda a extravagância para aquela noite, Carolina mostrava-se triste e pensativa. Dolores estranhou que, numa época especial como aquela, a filha não mostrasse a alegria e agitação habituais e isso deixou-a preocupada. Teria de indagar sobre o que estaria a perturbar aquela cabecinha.
Carolina, que tens filhinha?
Não estás a gostar deste Natal?
O que te aborrece?
-O que me aborrece? Nada me aborrece! Porque havia de aborrecer?
Dolores denotou descontentamento e sarcasmo no tom de voz da filha e decidiu insistir um pouco mais. Talvez se abrisse com ela… Não queria que Carolina estivesse triste, logo na época festiva de que mais gostava.
- Diz lá, querida… O que te apoquenta?
- Nada, senhora mãe! Está tudo bem, já disse!
- Está bem! Tu lá sabes. Quando quiseres, estarei aqui para te ouvir. Agora tenho de continuar a preparar a nossa ceia. Vai ser cá uma festança!…
- Mãe… Porque é que não temos um pinheirinho de Natal? A Linda tem, a Raquel também! Nunca me lembro de termos feito um…
- E isso é assim tão importante? Afinal, o que é o Natal para ti? Não respondas agora. Conversaremos ao serão.
A ideia de Dolores era levar a filha a refletir sobre o real valor das coisas.
…
A família estava reunida. A mesa farta. A alegria era visível em todos os rostos. Só Carolina se mostrava apreensiva. Para lhe incutir responsabilidade e lhe trazer algum ânimo ao espírito, João encarregou-a de fazer a oração inicial de agradecimento a Deus pela deliciosa ceia. Depois, todos comeram animadamente.
A mesa fora posta com um lugar a mais, hábito ancestral das famílias cristãs como símbolo de abertura ao acolhimento, não apenas do Príncipe da Paz, que renascia no coração dos crentes, mas também do amor e da vontade de acolher e partilhar com os mais necessitados um pouco do que se tinha. Eram muitos os pobres e pedintes que passavam amiúde pela aldeia, implorando por um pedaço de pão ou um caldo quente nas noites frias de inverno.
- Carolina…
- Chamou Dolores.
– Queres dizer-nos o que significa para ti o Natal?
- O Natal… - começou por dizer - é a festa do nascimento do menino Jesus.
É a festa em que as famílias se reúnem para confraternizarem entre si.
É a festa do amor e do perdão, segundo diz a minha catequista. E não deixa de ser a festa do exagero! Basta olhar para esta mesa…
- rematou com desdém.
- Tens razão, menina! O Natal é tudo isso e muito mais.
Já ouviste aquela frase que diz que “Natal é quando um homem quiser”?
Então…
O Natal simboliza o renascer constante do amor no coração dos homens, porque Jesus é amor no seio daqueles que abrem o coração aos sentimentos bons e os cultivam no seu dia-a-dia.
Guerra, fome e destruição são o reflexo da ambição desmedida do ser humano, que não tem limites na sua maldade, míseros e ambiciosos corações que tornam impossível o vislumbrar do paraíso.
E o paraíso é também o mundo que habitamos, mas que as pessoas más teimam em transformar num inferno.
Se o Natal acontecesse todos os dias no coração das pessoas, o mundo seria muito melhor e mais justo para todos. No entanto, vive-se de aparências. As pessoas são fúteis, vaidosas e superficiais nos sentimentos. Fala-se muito em solidariedade, mas custa ser solidário.
Todavia, o Natal é isso mesmo… É ter um coração grande e generoso, pronto a acolher o Outro na sua adversidade. E é esse também o significado daquele lugar vazio: o acolhimento e a solidariedade, lemas das famílias cristãs.
João tomou a palavra. Queria contar uma pequena estória que escutara, fazia muito tempo, pela boca do seu avô. Todos fizeram silêncio e o patriarca iniciou a narrativa, dizendo:
- A neve caía lenta e leve no silêncio daquela noite mágica. Era noite de Natal. Na aldeia, vivia uma família muito rica que todos tinham como humana e solidária. Sempre que acontecia um peditório para um qualquer fim, eram os primeiros a fazer a sua oferenda, logo anunciada pelo pároco da aldeia na missa de domingo. Se acontecesse um fatalismo qualquer - como aquele em que um incêndio destruíra por completo uma casa, deixando sem teto e sem dinheiro a família numerosa que a habitava -, imediatamente se faziam presentes, demonstrando grande vontade em ajudar.
Naquela noite de consoada, a família reunira alguns amigos à volta de uma mesa recheada de maravilhosas iguarias que faziam salivar os convidados apenas pelo prazer de olhar. Imagine-se, pois, o êxtase que provocaria no momento da degustação…
A mesa estava posta. Trinta lugares ocupados e mais um por ocupar, assim deixado propositadamente como mandava a tradição.
Durante a ceia, enquanto todos comiam e bebiam animadamente, alguém bateu à porta com alguma insistência, mas ninguém se dignava ir abrir. Um pouco incomodada, a dona da casa ordenou à empregada que fosse ver quem ousava importunar o seu lar em tão sagrado momento.
- Minha senhora, está lá fora um velhinho que diz ter fome e frio. Pede que, se possível, lhe sirva um caldo quente e lhe arranje um cobertor para que se agasalhe durante a sua longa jornada.
- Esta gente é de um descabimento!… - Comentou a anfitriã incomodada. - Nem na noite de consoada nos deixam em paz! Arranje-lhe umas sobras do jantar e diga-lhe que siga o seu caminho. Não quero essa gentalha a vagabundear à minha porta.
A criada fez o que a patroa lhe disse. Pegou numas sobras de comida e deu-as ao velhote. Depois, sem que ninguém desse por nada, foi a correr ao alpendre buscar o sobretudo velho do patrão e entregou-o ao mendigo, dizendo:
- Pode custar-me o emprego e uma difamação, mas que seja pelas alminhas do purgatório. Vá com Deus! Bom Natal! – e fechou a porta atrás de si. Uma paz interior inundou-a por completo.
Na sala, a folia continuava. Música, comida, bebida e euforia. Aos olhos de Bernardina, a doce criada, aquela reunião nada mais era do que uma festa profana de prazerosos excessos, onde não havia espaço para pensamentos elevados ou mesmo para a reflexão.
A certa altura, a dona da casa mandou servir a sobremesa e pediu aos convidados mais irreverentes que se sentassem para dar continuidade à Ceia. Bernardina recheara a mesa com caprichosos doces tradicionais.
De repente, alguém lançou um grito de puro terror, alarmando os presentes.
A dona da casa correu para ver o que se passava, mas a mulher que gritara nada respondeu.
A voz prendera-se-lhe na garganta.
O olhar estava pregado ao prato vazio, onde, vindas do nada, iam surgindo pequenas gotas de sangue.1
…
Depois de ouvir o pai, Carolina ficou assustada e pediu a Deus que lhe perdoasse aquele pecado. Tinha estado amuada o dia todo e nem desfrutara devidamente da ceia por desejar uma árvore de Natal, algo supérfluo e do qual podia abdicar. Não queria ter uma família que apenas vivesse de aparências, demostrando um desprendimento falso e uma imagem solidária que não correspondia à realidade dos seus corações, como aquela da estória que o pai acabara de contar.
O lugar vazio à mesa devia ter servido para acolher o pobre pedinte que naquela noite, invernosa e fria, lhes batera à porta.
Numa interpretação cristã, Carolina encarava as lágrimas de sangue que iam surgindo no prato como sendo o pranto do menino Jesus, que estaria tremendamente ofendido com a fraca atitude daquela família.
Assim, e refletindo em todos os acontecimentos daquele dia, acabou propondo aos restantes familiares que unissem as vozes em cânticos de louvor ao Deus Menino e que culminassem a noite de consoada com a Missa do Galo.
…
Consta que o lugar vago na mesa, que muitas famílias continuam ainda hoje a colocar, é destinado ao pobre e que, depois da refeição, nada se levanta para que os espíritos dos antepassados se venham banquetear com as iguarias próprias da quadra natalícia, sendo esta, segundo a mesma lenda, a única ocasião em que podem degustar da gastronomia de que usufruíam no seu tempo de vida terrena.
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Texto parcialmente publicado na coletânea “Lugares e palavras de Natal” – Lugar da Palavra, Editora, 2016
Publicado na sua totalidade na obra Pequenos Contos – Trechos de Realidades, Chiado Books, 2020.
Editado para o Blog “O Caminho do Universo”, 2025. 1 -
História narrada pelo pai João, inventada por mim. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Naturalmente que as personagens representam um tempo e maneiras de ser e fazer muito próprios.
A imagem serve apenas para contextualizar a história.

Dulci Ferreira, a autora do texto