05 Aug
05Aug

Fechou os olhos e calou os pensamentos. Já não tinha paciência para discussões nem palavras suficientes para argumentar. Desta vez, estava mesmo decidida. Tentaria colocar um fim àquele quotidiano hostil e infernal que lhe consumia as forças e a jovialidade. 

Ricardo pronunciara algumas frases por entre dentes, dando a entender a sua insatisfação. Todavia, não fora completamente percetível e Amélia, de cabeça baixa, preferiu o silêncio.   

A vila parecia deserta àquela hora da madrugada. O homem olhou pela janela, uma e outra vez, e continuou com o seu interrogatório… 

- Não dizes nada?  

– gritou, demonstrando fúria na voz 

- Quem cala consente! 

- Não há nada a dizer. 

Estas conversas não têm por onde se lhe pegue.  

Bom seria se bebesses menos e gastasses as horas a trabalhar. Andar de bar em bar não é uma opção de vida e as tuas atitudes também não. Não vês que estás a destruir-nos? 

- Eu é que estou a destruir-nos? Tu é que passas o dia fora de casa, sabe-se lá com quem e a fazer o quê, e eu é que estou a destruir-nos?  

Amélia não aguentava mais. 

O seu casamento dava sinais de rotura a cada dia e ela não sabia o que fazer para o segurar. 

Estava cansada, desgastada.  

Passava oito horas do seu dia fechada nos escritórios de uma oficina de automóveis e, em pós-laboral, ainda dava apoio a duas senhoras idosas para ganhar mais uns trocados, de modo a conseguir pagar as contas no fim do mês e equilibrar o orçamento familiar. 

O marido, enfermeiro de profissão, perdera o emprego alguns meses antes por ter sido negligente ao administrar um medicamento errado a uma paciente, ato que quase lhe tirara a vida. A mulher ficara em coma durante algum tempo, sobrevivendo por milagre. 

… 

Fora uma tarde, por demais, intensa. Ao hospital, acorreram várias emergências, para além de uma situação de acidente gravíssima, que exigiu um helicóptero do INEM. 

Ricardo não tivera mãos a medir. 

Depois do expediente e completamente exausto, dirigira-se a um bar onde bebera um pouco para além da conta. 

O rapaz já antes vivera situações dramáticas de alcoolismo, mas fazia tempo que se tinha recuperado e nada havia a apontar-lhe. 

Naquele fim de tarde, encontrou um amigo e beberam juntos. Na euforia do momento, esquecera que tinha sido destacado para fazer plantão e varar a noite no hospital, o que acabou por fazer, porém, completamente embriagado. 

O homem pagou caro pelo seu erro.  

Fora despedido do emprego e expulso da ordem dos enfermeiros.  

Amélia tentara ajudá-lo, carregando aos ombros uma cruz que devia ser partilhada por ambos. Desculpara-o vezes sem conta, sempre que chegava a casa e o encontrava alcoolizado, compreendendo a sua raiva e frustração. 

Incentivara o marido a tratar-se numa clínica de desintoxicação e disponibilizara-se, até, a acompanhá-lo às reuniões dos AA (Alcoólicos Anónimos), depois de descobrir na Internet uma instituição para esse fim e próximo da sua área de residência. 

Desejou que se recuperasse completamente e que voltasse a ser o homem doce, carinhoso e responsável com quem um dia decidira constituir família e partilhar a vida até à eternidade. Mulher lutadora e de enorme coração, Amélia emanava doçura no olhar e um sorriso franco que cativava as pessoas, principalmente os idosos a quem dava especial atenção. 

Reconhecendo as suas fraquezas e os complexos de inferioridade que o acompanhavam no dia-a-dia, Ricardo sofria uma angústia permanente com medo que a esposa viesse a interessar-se por outro homem. Os ciúmes que sentia levavam-no a agir com alguma violência nos dias de maior embriaguez.  

Amélia saía do emprego sempre à mesma hora. Terminava o expediente pelas dezoito horas, apanhava o filho na creche e dirigia-se, depois, para casa das anciãs a quem prestava apoio domiciliário, raramente ultrapassando as duas horas. 

Porém, naquele dia, uma das senhoras sentira-se mal. Amélia chamou o INEM e enquanto esperava pela ambulância, ligou à mãe e pediu-lhe que fosse buscar o menino, recomendando que tratasse dele e o alimentasse. 

Depois que o levasse a casa e o colocasse para dormir, aconselhando ao genro que deitasse o olho na criança. 

Entrou na ambulância e acompanhou a idosa à urgência do hospital, ficando retida até que alguém da família apareceu, já tardiamente.   

Passava das vinte e três horas quando abriu a porta de casa e penetrou no interior do aposento. 

No escuro, o marido esperava a sua chegada, acoitado nas sombras da noite, como fera que aguarda o melhor momento para desferir o golpe sobre a presa. 

Amélia apanhou um susto de morte quando o homem se levantou e saiu do escuro, dirigindo-se para ela com uma voz rouca e sumida, questionando-a sobre o porquê da demora. 

Cansada e faminta, pois que nada havia comido desde a hora do almoço, a mulher explicara-lhe, uma e outra vez, porque chegara tão tarde, mas Ricardo berrava com ela, destratando-a, acusando-a de traição e chamando-a de prostituta, como se fosse uma qualquer. 

Não suportando tamanha humilhação, Amélia virou-lhe as costas e dirigiu-se à cozinha para comer alguma coisa. Ele agarrou-a pelo braço e voltou-a para si, arrancando-lhe um beijo à força. Depois, derrubou-a sobre o sofá, numa tentativa de violação. Amélia conseguiu escapar-se-lhe e fechou-se na cozinha, soluçando. 

- Vaca! Prostituta! És uma traidora!  

– Vociferava o homem do outro lado da porta.  

José acordara com os arrufos do pai. O pequeno saltou da cama e correu a chorar, chamando pela mãe… 

- Mamã, mamã! 

Ao ouvir os gritos da criança, Ricardo afastou-se para a sala e Amélia abriu a porta de rompante, apenas pensando no filhinho e nos traumas que aquela situação poderia vir a acarretar. Abraçou-o e tentou acalmá-lo… 

- Já passou, meu amor! Já passou!  

– olhou o menino nos olhos e sorriu.  

– Está tudo bem, meu doce. A mamã está aqui! Scheeeee…  

Amélia pegou no garoto ao colo e levou-o para o quarto. Deitou-o na cama e ficou ao seu lado até que voltasse a adormecer. Entretanto, pensou seriamente na sua vida e em tudo o que poderia vir a acontecer. Pouco depois, voltou à cozinha para comer algo. Uma coragem fora do normal abraçava-a, não permitindo que tivesse medo. A reação do filho e o receio de que aquela situação viesse a piorar, causando-lhe ainda maiores dissabores, fizeram com que tomasse uma decisão. 

Ricardo estava quieto sentado no sofá da sala, calmo e pensativo. Amélia aproximou-se e olhou-o demoradamente, sem medo. Na verdade, não precisava dele para nada. Fazia já muito tempo que era ela que o sustentava e lhe pagava os vícios. Não passava de um inútil a viver às suas custas. Nunca se interessara por visitá-la no trabalho ou de averiguar onde passava o resto das horas até chegar a casa. Nunca tentara ajudar ou simplesmente minimizar-lhe o cansaço ou dar-lhe alguma força nos dias de maior desânimo. Apenas sabia inquirir, julgar e condenar. No final, não passava de um farrapo de homem, acomodado ao fracasso. 

Ao dar pela presença da esposa, Ricardo continuou com as mesmas acusações, estúpidas e sem nexo. Amélia pediu-lhe que respeitasse o sono do filho e que falasse mais baixo, ao que ele aquiesceu, embora sempre com insinuações e inquirições… 


- Vá, diz! Confessa d´uma vez por todas que tens um amante! 


- Não há nada para dizer!  

Já te falei que esta conversa não nos leva a lado nenhum.  

Porque não arranjas um trabalho e preenches os dias a fazer algo útil na vida?  

Sou eu que te sustento.  

Ainda não percebeste?   


- És uma vadia! Uma porca, uma… 

Amélia chegara ao limite das forças e da paciência. Num momento de máxima saturação e impulsionada por uma força que desconhecia, enfrentou o marido e disse: 

- Acabou! Não aguento mais isto. Quero o divórcio! 

Do lusco-fusco, surgiu uma mão furiosa que assentou violentamente no rosto feminino, deixando-lhe a pele a latejar. O impacto da bofetada fez com que a mulher rodasse sobre si mesma e embatesse na mesa da sala de estar, derrubando os objetos de decoração que ali se encontravam. 

O barulho despertou a criança que apareceu no espaço sem que ambos dessem por isso. Como resposta ao ato violento do marido, Amélia ofereceu-lhe a outra face… 

- Podes continuar, se isso te faz sentir um homem melhor e mais realizado. Força!           

…          

Fora a primeira bofetada no sentido literal da palavra, mas a dor que sentia era na Alma e no coração. 

Ricardo ferira-a vezes sem conta com palavras duras e indecentes, mas sempre o desculpara usando, como exemplo, a máxima 

“Palavras leva-as o vento” 

Todavia, desta vez o homem ousara ir mais longe e ela garantiu a si mesma que jamais permitiria que voltasse a acontecer.       

In “PEQUENOS CONTOS – TRECHOS DE REALIDADES” – Chiado Books Editora, 2020 (texto editado).

Dulci Ferreira, a autora do texto

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