Fechou os olhos e calou os pensamentos. Já não tinha paciência para discussões nem palavras suficientes para argumentar. Desta vez, estava mesmo decidida. Tentaria colocar um fim àquele quotidiano hostil e infernal que lhe consumia as forças e a jovialidade.
Ricardo pronunciara algumas frases por entre dentes, dando a entender a sua insatisfação. Todavia, não fora completamente percetível e Amélia, de cabeça baixa, preferiu o silêncio.
A vila parecia deserta àquela hora da madrugada. O homem olhou pela janela, uma e outra vez, e continuou com o seu interrogatório…
- Não dizes nada?
– gritou, demonstrando fúria na voz
- Quem cala consente!
- Não há nada a dizer.
Estas conversas não têm por onde se lhe pegue.
Bom seria se bebesses menos e gastasses as horas a trabalhar. Andar de bar em bar não é uma opção de vida e as tuas atitudes também não. Não vês que estás a destruir-nos?
- Eu é que estou a destruir-nos? Tu é que passas o dia fora de casa, sabe-se lá com quem e a fazer o quê, e eu é que estou a destruir-nos?
Amélia não aguentava mais.
O seu casamento dava sinais de rotura a cada dia e ela não sabia o que fazer para o segurar.
Estava cansada, desgastada.
Passava oito horas do seu dia fechada nos escritórios de uma oficina de automóveis e, em pós-laboral, ainda dava apoio a duas senhoras idosas para ganhar mais uns trocados, de modo a conseguir pagar as contas no fim do mês e equilibrar o orçamento familiar.
O marido, enfermeiro de profissão, perdera o emprego alguns meses antes por ter sido negligente ao administrar um medicamento errado a uma paciente, ato que quase lhe tirara a vida. A mulher ficara em coma durante algum tempo, sobrevivendo por milagre.
…
Fora uma tarde, por demais, intensa. Ao hospital, acorreram várias emergências, para além de uma situação de acidente gravíssima, que exigiu um helicóptero do INEM.
Ricardo não tivera mãos a medir.
Depois do expediente e completamente exausto, dirigira-se a um bar onde bebera um pouco para além da conta.
O rapaz já antes vivera situações dramáticas de alcoolismo, mas fazia tempo que se tinha recuperado e nada havia a apontar-lhe.
Naquele fim de tarde, encontrou um amigo e beberam juntos. Na euforia do momento, esquecera que tinha sido destacado para fazer plantão e varar a noite no hospital, o que acabou por fazer, porém, completamente embriagado.
O homem pagou caro pelo seu erro.
Fora despedido do emprego e expulso da ordem dos enfermeiros.
Amélia tentara ajudá-lo, carregando aos ombros uma cruz que devia ser partilhada por ambos. Desculpara-o vezes sem conta, sempre que chegava a casa e o encontrava alcoolizado, compreendendo a sua raiva e frustração.
Incentivara o marido a tratar-se numa clínica de desintoxicação e disponibilizara-se, até, a acompanhá-lo às reuniões dos AA (Alcoólicos Anónimos), depois de descobrir na Internet uma instituição para esse fim e próximo da sua área de residência.
Desejou que se recuperasse completamente e que voltasse a ser o homem doce, carinhoso e responsável com quem um dia decidira constituir família e partilhar a vida até à eternidade. Mulher lutadora e de enorme coração, Amélia emanava doçura no olhar e um sorriso franco que cativava as pessoas, principalmente os idosos a quem dava especial atenção.
Reconhecendo as suas fraquezas e os complexos de inferioridade que o acompanhavam no dia-a-dia, Ricardo sofria uma angústia permanente com medo que a esposa viesse a interessar-se por outro homem. Os ciúmes que sentia levavam-no a agir com alguma violência nos dias de maior embriaguez.
Amélia saía do emprego sempre à mesma hora. Terminava o expediente pelas dezoito horas, apanhava o filho na creche e dirigia-se, depois, para casa das anciãs a quem prestava apoio domiciliário, raramente ultrapassando as duas horas.
Porém, naquele dia, uma das senhoras sentira-se mal. Amélia chamou o INEM e enquanto esperava pela ambulância, ligou à mãe e pediu-lhe que fosse buscar o menino, recomendando que tratasse dele e o alimentasse.
Depois que o levasse a casa e o colocasse para dormir, aconselhando ao genro que deitasse o olho na criança.
Entrou na ambulância e acompanhou a idosa à urgência do hospital, ficando retida até que alguém da família apareceu, já tardiamente.
Passava das vinte e três horas quando abriu a porta de casa e penetrou no interior do aposento.
No escuro, o marido esperava a sua chegada, acoitado nas sombras da noite, como fera que aguarda o melhor momento para desferir o golpe sobre a presa.
Amélia apanhou um susto de morte quando o homem se levantou e saiu do escuro, dirigindo-se para ela com uma voz rouca e sumida, questionando-a sobre o porquê da demora.
Cansada e faminta, pois que nada havia comido desde a hora do almoço, a mulher explicara-lhe, uma e outra vez, porque chegara tão tarde, mas Ricardo berrava com ela, destratando-a, acusando-a de traição e chamando-a de prostituta, como se fosse uma qualquer.
Não suportando tamanha humilhação, Amélia virou-lhe as costas e dirigiu-se à cozinha para comer alguma coisa. Ele agarrou-a pelo braço e voltou-a para si, arrancando-lhe um beijo à força. Depois, derrubou-a sobre o sofá, numa tentativa de violação. Amélia conseguiu escapar-se-lhe e fechou-se na cozinha, soluçando.
- Vaca! Prostituta! És uma traidora!
– Vociferava o homem do outro lado da porta.
José acordara com os arrufos do pai. O pequeno saltou da cama e correu a chorar, chamando pela mãe…
- Mamã, mamã!
Ao ouvir os gritos da criança, Ricardo afastou-se para a sala e Amélia abriu a porta de rompante, apenas pensando no filhinho e nos traumas que aquela situação poderia vir a acarretar. Abraçou-o e tentou acalmá-lo…
- Já passou, meu amor! Já passou!
– olhou o menino nos olhos e sorriu.
– Está tudo bem, meu doce. A mamã está aqui! Scheeeee…
Amélia pegou no garoto ao colo e levou-o para o quarto. Deitou-o na cama e ficou ao seu lado até que voltasse a adormecer. Entretanto, pensou seriamente na sua vida e em tudo o que poderia vir a acontecer. Pouco depois, voltou à cozinha para comer algo. Uma coragem fora do normal abraçava-a, não permitindo que tivesse medo. A reação do filho e o receio de que aquela situação viesse a piorar, causando-lhe ainda maiores dissabores, fizeram com que tomasse uma decisão.
Ricardo estava quieto sentado no sofá da sala, calmo e pensativo. Amélia aproximou-se e olhou-o demoradamente, sem medo. Na verdade, não precisava dele para nada. Fazia já muito tempo que era ela que o sustentava e lhe pagava os vícios. Não passava de um inútil a viver às suas custas. Nunca se interessara por visitá-la no trabalho ou de averiguar onde passava o resto das horas até chegar a casa. Nunca tentara ajudar ou simplesmente minimizar-lhe o cansaço ou dar-lhe alguma força nos dias de maior desânimo. Apenas sabia inquirir, julgar e condenar. No final, não passava de um farrapo de homem, acomodado ao fracasso.
Ao dar pela presença da esposa, Ricardo continuou com as mesmas acusações, estúpidas e sem nexo. Amélia pediu-lhe que respeitasse o sono do filho e que falasse mais baixo, ao que ele aquiesceu, embora sempre com insinuações e inquirições…
- Vá, diz! Confessa d´uma vez por todas que tens um amante!
- Não há nada para dizer!
Já te falei que esta conversa não nos leva a lado nenhum.
Porque não arranjas um trabalho e preenches os dias a fazer algo útil na vida?
Sou eu que te sustento.
Ainda não percebeste?
- És uma vadia! Uma porca, uma…
Amélia chegara ao limite das forças e da paciência. Num momento de máxima saturação e impulsionada por uma força que desconhecia, enfrentou o marido e disse:
- Acabou! Não aguento mais isto. Quero o divórcio!
Do lusco-fusco, surgiu uma mão furiosa que assentou violentamente no rosto feminino, deixando-lhe a pele a latejar. O impacto da bofetada fez com que a mulher rodasse sobre si mesma e embatesse na mesa da sala de estar, derrubando os objetos de decoração que ali se encontravam.
O barulho despertou a criança que apareceu no espaço sem que ambos dessem por isso. Como resposta ao ato violento do marido, Amélia ofereceu-lhe a outra face…
- Podes continuar, se isso te faz sentir um homem melhor e mais realizado. Força!
…
Fora a primeira bofetada no sentido literal da palavra, mas a dor que sentia era na Alma e no coração.
Ricardo ferira-a vezes sem conta com palavras duras e indecentes, mas sempre o desculpara usando, como exemplo, a máxima
“Palavras leva-as o vento”.
Todavia, desta vez o homem ousara ir mais longe e ela garantiu a si mesma que jamais permitiria que voltasse a acontecer.
In “PEQUENOS CONTOS – TRECHOS DE REALIDADES” – Chiado Books Editora, 2020 (texto editado).
Dulci Ferreira, a autora do texto