19 Jan
19Jan


Naquela tarde, não era o cansaço, nem o sono nem os afazeres que a obrigaram a entrar no carro e exasperadamente encostar a testa ao volante. 

Deixou-se ficar ali, ligou o rádio e entre as madeixas do seu cabelo olhou para as suas mãos.... 

Tinha que marcar manicure … 

Meteu a chave na ignição e só depois levantou os olhos, depois o rosto.

O sol, já pronto para se pôr, encadeou-a e num reflexo levou a mão à testa. Cerrou os olhos e lamentou não ter os óculos de sol na carteira. Era sempre a mesma coisa, sempre que trocava de mala, ficava sempre qualquer coisa de fora.

Não era para casa que ela queria ir. Não já, ainda era dia e de repente apercebeu-se de que havia vida depois do escritório. 

Mães com filhos pela mão, homens de negócios que ajeitavam gravatas, outros aliviados, tiravam-nas e desabotoavam o botão de cima. 

Mulheres de saltos altos, com ar de quem sente dor nos pés, mas mantêm a postura, atravessavam as ruas já atarefadas com a ementa do jantar.

Ela esperava o sinal ficar verde.

Como estava farta de esperar! Do sinal, dos sinais…. daqueles que fingia não ver.

O condutor do carro ao lado, piscava o olho e esperava resposta, o do carro de trás buzinou. Irritada pôs o pisca e arrancou.

Novo sinal vermelho, nova paragem, e o parvo do carro do lado continuava a meter-se com ela!

Quantos sinais seriam precisos para que ela parasse um pouco. Para que ela observasse o trânsito da vida, os transeuntes da sua vida. A quantos pedestres teria ela que ceder passagem, ficando sempre os seus próprios sonhos para o final? Quantas estradas, quantas ruas atravessaria...?

Ao fundo da rua, que descia num prateado serpentear até ao fundo da descida, viu o rio.

O rio, sempre lá, seu melhor conselheiro, o rio a que ela tantas lágrimas emprestara, só para que os barcos navegassem.

E ela continuava, todos os dias, contra o destino remava, presa a uma realidade a quem mentia todos os dias.

Sem se lembrar como chegou a casa, estacionou, e encostou a testa ao volante.


Ventos Sábios

(Heterónimo de Ruth Collaço)



Ruth Collaço,  a autora deste texto. 

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