08 Oct
08Oct

Cortiça, às vezes tenho a impressão que somos feitos de cortiça. Dormentes, é que nem formigueiro sentimos. E olhem que eu sei bem a diferença entre sentir (a tal cortiça) e o formigueiro, que o diga o meu braço direito e o meu cubital. 

Pois bem, estava eu na cortiça... 

Vejo-o todos os dias, e de tanto o ver e me ter habituado a vê-lo, acabei por não o ver, não o sentir, não reconhecer, ou seja, deixei de validar a sua existência, e isto chocou-me e envergonhou-me hoje. 

E aqui a presunção, o ego, a imagem própria que temos de nós mesmos vai além da arrogância, da vaidade... 

Costuma estar ali, naquele banco de jardim. Parece-me que vive ali, ou que aquele será o seu lugar de escolha para as suas sestas. Dou por mim a fazer o que detesto ver os outros fazer, que é olhar sem dar nas vistas. Mas hoje surpreendentemente, não estava no seu banco. Em vez dele, estavam apenas as suas coisas reviradas. 

Estranhei e por segundos pensei “por onde andará ele?”, mas foram só segundos. 

Estacionei, verifiquei que a porta estava fechada, dei um toque ao cabelo (mais hábito que vaidade) e lá fui eu pelo passeio, escolhendo sempre em que paralelepípedo eu pousava o salto (um verdadeiro puzzle para acertar sem torcer o pé... certamente que quem inventou a calçada portuguesa jamais usou saltos altos!) 

“Um café cheio por favor”.

 Olhei à volta, tinha ainda meia hora de almoço, uma mesa apenas, uma mesa vaga me esperava. 

Puxei a cadeira que me permitiria ficar com o sol a bater nas costas. Senti imediatamente aquele arrepio delicioso do calor nas costas... só de lembrar arrepio-me de novo! O primeiro contacto com a chávena também me arrepiou, mas foi porque estava quente, o meu lábio soltou um gritinho que foi rigorosamente controlado pela mão na boca. 

“Tu não mereces!” 

Surpreendida com aquela voz, meio arrastada meio muda, passei discretamente o queixo por cima do ombro esquerdo e lá estava ele. 

O homem do banco de jardim.


 

Vestia umas calças de cabedal, um casaco de cabedal que por sua vez, vestia por cima de não sei quantas camisas. Os dedos, negros de tantos anéis de caveiras, anjos, asas e sei lá o quê que usava, seguravam um terço. Botas de motoqueiro e várias correntes à cintura. 

Reparei pela primeira vez que tem olhos verdes, tão verdes que contrastavam com o azul do céu que nos servia de fundo. 

Fitou-me olhos nos olhos, eu sem saber bem como “validar” aquele ser, sorri-lhe e voltei a escaldar o lábio. 

“Tu não mereces, Porra”; voltou a afirmar. 

Desta vez tinha que validar... virei todo o tronco na direção dele e depois de um sorriso nervoso respondi, 

“Não mereço não, ninguém merece queimar o lábio quando o que mais quer é um golinho de café”; e sorri, mais uma vez nervosamente. 

“Não Senhora, não entendeste!  
Tu não mereces, mas é a vida que tens! 
Tu não os vês, mas eu vejo, e eles falam comigo.  

Andam de olho em ti... tu não mereces pá.... mas deixa lá, a vida vai mudar, só tens que seguir o teu caminho. 
 

Olha, faz como eu, que se lixe! 
 

Caminho, caminho, caminho por aí até chegar onde quero... olha... caminha tu também! 
 

Caminhemos!”
 

Num sobressalto disfarçado, virei-me para a frente no meu lugar, engoli as palavras com um gole de café e pensei para mim: 

“A sério que ele disse “C-A-M-I-N-H-E-M-O-S?!” 

Engasguei-me, manchei a blusa com umas gotas de café que me saíram de jato... quando olhei de novo para o lado já o homem do banco do jardim (de olhos verdes! ah... e pele morena) seguia pela Alameda acima. 

Reparei que as correntes que usava eram afinal terços de vários tamanhos e feitios e nas costas do casaco de cabedal, tinha a palavra “ANGEL” bordada a letras douradas. 

Incrédula, provavelmente com um ar “despardalado”, fiquei a olhar para ele... Num lapso de tempo fora de mim, pensei em quantas vezes fingi não o ver. Quantas vezes duvidei da sua sanidade mental. 

Quantas vezes teria ele ouvido vozes... as vozes, A Voz...!  

Quantas vezes se perdem momentos pérola como aquele no chão, por fingirmos não ver e olhar para o lado, para o chão, para o céu.... só pelo desconforto que é olhar para quem (parece que) está pior que nós. 

Será?  

Sim, porque ao validarmos, temos que nos olhar ao espelho também, e esse nem sempre nos devolve o que queremos receber. 

Não é a vida, os relacionamentos, as expectativas assim também?  

A minha mãe sempre me ensinou que a Expectativa é mãe da Desilusão... 

Quando pousei a chávena e ia para me levantar para a devolver, chávena e pires (com sorte o pacote de açúcar não voou) à menina que se farta de avisar que não há serviço de esplanada... 


Do céu azul, do céu sem nuvens, sem pássaros, sem vento ou brisa, num doce, lento e suave bailado, vi cair uma pena branca, que apanhei delicadamente na palma da mão.  

De olhos rasos, guardei a pena, entreguei a chávena (com o pires!) e voltei a sentir um arrepio... mas este senti-o na nuca, como se de um banho de luz se tratasse.  

Fechei os olhos, recompus-me e segui caminho. 

Caminhei. 

Dizem que o Universo nos deixa sinais sincronizados, que nos vão mostrando o caminho. 

Que Deus ou a Deusa, ou o Universo se usam de pessoas e situações para nos fazer chegar “aquela” mensagem na hora certa...  

os óculos de sol, fizeram de escudo e máscara... sim porque quem usa saltos altos, também usa óculos de sol... 

-Mais vaidade que necessidade. 

Olhei mais uma vez para trás, e debaixo dos raios de sol que incidiam agora nas costas do homem do banco (de olhos verdes e pele morena) conseguia apenas ver a palavra “ANGEL” a dourado. 

Provas de que a vida é viva e de que eu não estou sozinha! 

Ventos Sábios - Ruth Collaço® 


Ruth Colaço, a Autora do texto

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