A inevitável dor da cura.
Tendo nascido em África, fui uma da criança abençoada de ter crescido “livre”, de ter brincado na rua com primos e vizinhos.
Lá onde a terra vermelha pinta o por do sol com as suas cores e nuances da sua paleta decores muito própria.
Pôr do Sol no Lubango
Terra essa, a vermelha, que tingia tudo… desde meias brancas, sandalinhas de “ir à igreja”, calcanhares e joelhos…
Lembro-me com carinho, de por tanto brincar na terra, chegar a casa com os joelhos “encardidos” e é aí que começa o teatro.
Poeira vermelha no capim
Na hora do banho, a minha mãe pegar numa esponja do mar seca para me esfregar os joelhos…
Ui!
Aí começava o “ai…!”…
“Assim doi… não mãe”.
Esponja do mar seca
Chego até a sorrir só de me lembrar. As queixas não eram resultado da força a mais exercida pelas mãos da minha mãe, mas sim porque os joelhos tinham sido bem postos à prova durante as brincadeiras.
A bem dizer, “uma menina bonita não pode andar de joelhos escuros” dizia a minha mãe:
E eu, querendo ser essa menina bonita lá aguentava o que ouvia avó e tias dizerem umas às outras em tom de brincadeira:
“Sofre Rosa, se queres ser formosa”.
Contudo, pior ainda era quando por qualquer aventura mais arrojada, ou descuido nas minhas viagens de bicicleta (era azul escura com umas florinhas cor de rosa pintadas nos guarda lamas…) á volta dos quarteirões das casas das tias, ferrava um trambolhão e lá esfolava joelhos, cotovelos e afins, pois sabia que decerto teria que enfrentar o álcool/água oxigenada para desinfetar a ferida e depois o mercúrio cromo…
Este ultimo eu aguentava bem, mas o álcool… esse era toda uma música diferente do que cantava com a esponja do mar na hora do banho.
Sou até capaz de afirmar que todo o bairro ficava a saber que eu tinha caído… que saudades daquele tempo.
Mal sabia eu, que ali iniciava toda uma aprendizagem que só (bem) mais tarde aprendi.
É que para sarar qualquer ferida, é preciso limpar, desinfetar para que o corpo possa então regenerar… e arde!
Oh se arde.
Assim é com as feridas de alma, de coração.
O processo de cura, percebi pelas lições e “perdas” na vida e confirmado do alto dos meus 57 anos.
Implica sempre e inevitavelmente uma dor, um peso em remoinho no peito, levando-nos muitas vezes a momentos que só mesmo quem sente, sabe o que doi.
Hoje entendo tão bem que fugir da dor é adiar a cura. Tal como os meus joelhos esfolados precisavam do ardor do álcool para não ganharem infeção, também as feridas emocionais exigem coragem para serem enfrentadas.
A dor não é inimiga — é sinal de que algo precisa de atenção, de cuidado, de transformação… e até de uma grande e paciente dose de amor próprio.
É nesse confronto com o que mais custa que nasce a verdadeira libertação.
A dor limpa, revela, abre espaço para o novo.
Não há espiritualidade sem atravessar o deserto, não há cura sem atravessar o ardor que nos prepara para o regenerar do nosso todo, da nossa essência.
E, tal como naquela infância tingida de terra vermelha, continuo a aprender que sofrer, sim, pode ser parte do caminho — mas é também o início da beleza que renasce.
A dor que aprendi na vida que me foi chão na infância, ensinou-me que a cura começa onde a alma se ajoelha e o espirito se abre em silêncio ao sopro antigo das raízes que ainda sabem cantar.
E na terra vermelha dos meus antepassados aprendi que a dor não é castigo, é caminho — e que só quem conhece as raízes sabe como curar as feridas. "
Ventos Sábios (Heterónimo de Ruth Collaço)
Ruth Collaço, a autora do texto