03 Sep
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A PANDEMIA…


Farejinhas, 17 de setembro de 2020 

São, neste momento, 15h de uma tarde pardacenta, em que o vento forte se faz sentir no violento agitar das árvores do pequeno parque que abeira a estrada nacional 225. 

Levanto-me da cadeira, onde sempre me sento à secretária para escrever, e espreito pela janela as grossas nuvens que carregam o céu... 

Não tardará a chover. 

Uma dor nas costas e um cansaço físico e intelectual inexplicáveis tomam conta de todo o meu ser. 

É a mudança do clima que sempre me afeta seriamente. 

É assim, porque o sinto em todos os ossinhos daquele que me traz de pé. 

Exausta, decido abandonar o que me ocupa para me recostar um pouco na chaise-longue, enquanto José, meu marido, visita sua mãe no Lar de Esperança e Bem-estar de São Joaninho. 

Infelizmente, e como é do conhecimento geral, só pode ter uma visita por semana com todos os cuidados recomendados pela DGS e apenas durante dez minutos. 

Tento descansar, mas se me é tão difícil dormir de noite, será quase impossível fechar os olhos e adormecer durante o dia. 

Sei que uma sesta me revigoraria as forças e diminuiria as dores que me consomem, fragilidades que me acompanham desde há seis anos a esta parte, depois dos tratamentos de quimioterapia e radioterapia a que fui submetida no IPO de Coimbra. 

A verdade é que desde que por lá passei, nunca mais me livrei de algumas mazelas e, principalmente, da maldita insónia. Mas também nunca fui de fazer sestas. Depois, sempre tive uma estranha teoria que ao longo do tempo fui repetindo para mim mesma: 

“Há uma eternidade para dormir.” 

Havia, pois, que manter os olhos abertos e a mente desperta. 

Dormir poucas horas era já o karma de minha mãe. Talvez o tenha herdado dela!… 

Enfim… As minhas noites são transparentes, um declarado pesadelo, por vezes sem dor ou outras perturbações, mas que fragilizam o meu corpo e a minha mente. Não descansar o suficiente torna os meus dias pesados e até intelectualmente me é prejudicial na concentração necessária à criação literária. 

O meu pensamento vagueia demasiado e ultimamente perco imenso tempo zanzando de um lado para o outro, indo e vindo porque me falta isto ou aquilo que deixei ali ou acolá, uma e outra vez…  

Mas, hoje, recostei-me para descansar. E consegui dormitar por segundos. Era já um feito inédito, uma estranheza de acontecimento, quando a porta de entrada se abre abruptamente e José chama por mim: 

“Dulcí!” 

Abro os olhos de repente e sinto um baque no peito, um tremor esquisito e uma agonia avassaladora… 

Merda!” (reação imediata) “Acordaste-me, pá! Ainda mal preguei o olho e…” 

“A sério? Estavas a dormir? Oh… Desculpa! Como poderia imaginar? Descansa, amor! Descansa!” 

E ajeitou-me a mantinha que me cobria para que tentasse adormecer de novo. 

Acham que consegui? 

Claro que não, embora me tenha deixado ficar quieta durante mais uns dez minutos. 

“E tua mãe, como está?” 

Perguntei.   

… Quando iniciei este texto, a minha intenção era escrever sobre os velhinhos que se encontram nos lares, tristes, cabisbaixos, letárgicos, sem poderem receber um carinho dos seus familiares, desde que a maldita pandemia por Coronavírus surgiu no horizonte, se radicou e parece não querer abandonar o barco desesperante dos nossos dias. 

Fernanda é o nome da minha sogra. Mulher que muito sofreu nesta vida e que merecia ter uma velhice tranquila e de paz, mas que pouco a pouco se vai perdendo no mundo vago e escuro do esquecimento, deixando de reconhecer até o filho que nunca a abandonou. Tem Alzheimer e com todo o cenário de pandemia, piorou a olhos vistos no último meio ano. Era das poucas pessoas que conservava a mobilidade naquele lar, antes da chegada da Covid-19. Nunca esteve positiva para a doença, mas já vai na quinta ou sexta quarentena. Agora está numa cadeira de rodas e a alegria que tanto a caracterizava desapareceu por completo do seu rosto. Sempre gostou muito de abraços e beijos e creio que sentiu deveras a ausência dos afetos. Adorava jogar às cartas com os colegas e agora vê-se impedida de o fazer, uma vez que a maioria dos velhinhos se mantém nos seus aposentos, praticamente privados de contacto, até com os funcionários… 

É este impedimento, de chegar até ela, este sentimento de impotência, a impossibilidade de partilhar afetos, de a aconchegar num abraço fraterno e sentido, esta louca, embora necessária restrição a dez minutos de visita, com separadores acrílicos e máscaras, que nos tornam estranhos uns aos outros, mas que são necessários para evitar novos contágios numa instituição que foi tão fustigada pela Covid, logo nos primeiros tempos, o que torna tudo ainda mais confuso e assustador para os nossos velhinhos e verdadeiramente angustiante para nós, familiares preocupados com a sua saúde e bem-estar. 

E aquelas pessoas que se encontram fechadas com eles, funcionários habituais, mas que agora parecem extraterrestres, seres vindos de outro planeta vestidos com fatos estranhos e máscaras assustadoras, também eles aterrorizados pelas notícias alarmantes, escancaradas nos meios de comunicação social. 

Que triste realidade esta! 

Que dor de alma ver os nossos entes-queridos perderem a mobilidade pelas muitas quarentenas que fazem; pelo tanto de tempo que ficam sentados e imobilizados dentro dos seus quartos, espreitando pelas janelas, a maioria sem compreender realmente o que se passa ao redor, mas que lhes parece terrivelmente ameaçador. É uma tortura para eles e para nós saber que, por uma qualquer ida ao hospital, seja para consulta de rotina, por um pico de febre que se manifeste, ou por outro motivo qualquer, são obrigados a isolamento profilático, ainda que tenham sido testados e o resultado tenha dado negativo para o novo coronavírus. 

Pobres dos nossos velhinhos! Tanto deram de si nesta vida e quando mais deviam viver com dignidade, ficam privados da presença daqueles que amam. Estão assustados. Passam o dia a gritar sem saber porquê. E são dopados para que fiquem mais calmos. Parecem zombies, de olhar perdido, apáticos e profundamente contristados. 

Compreendo que escutar berros o dia todo seja torturante, tanto para os que mantêm alguma lucidez, como para os cuidadores que, creio, fazem o que sabem e podem para lhes proporcionar a melhor qualidade de vida possível.             

E a pandemia a não dar tréguas pela inconsciência, vaidade e egoísmo de muitos que se negam a cumprir regras.

Pessoalmente, defendo o USO OBRIGATÓRIO DE MÁSCARA em todas as circunstâncias. Só assim será possível travar este inimigo invisível que o mundo inteiro preocupa e atormenta. 

O trabalho nos lares é complicado e desgastante. 

E não é para todos. 

É preciso ter ‘estofo’ para lidar com certas situações. 

A pandemia só veio piorar um quotidiano já normalmente saturante. 

Este pessoal precisa de apoio, literalmente de ajuda, pelo que me é possível constatar. 

Por isso, e consciente desta problemática, faço um apelo às entidades competentes locais, regionais, nacionais para que, quando tudo acalmar (e esperemos que acalme realmente), se disponham a ajudar os lares existentes no país, criando e formando equipas de voluntariado para apoio aos cuidadores, nomeadamente, na parte de reabilitação física, auxiliando os velhinhos na realização de exercícios simples (como caminhar) para que os ajude a recuperar os movimentos, tão atrofiados por causa do isolamento a que tantas vezes têm de sujeitar-se. 

A falta de mobilidade, isto é, o estarem quase sempre sentados, leva os velhinhos a criarem chagas em certas partes do corpo, remetendo-os a um sofrimento terrível que deve ser evitado; ainda mais no caso de pessoas com diabetes. 

O apoio que hoje lhes falta era dado por familiares durante as visitas, estando estes agora privados de o fazer por razões óbvias. 

Sejamos também cuidadores, solidarizando-nos uns com os outros para que o fardo que hoje carregamos se torne mais leve e suportável para todos. 

E que a esperança de dias melhores não se apague dos nossos horizontes. 

17/09/2020

Dulci Ferreira, a autora do texto

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