19 Nov
19Nov

A Voz acordou-me assim. 

"Metas!" 

Acordo atordoada com esta palavra. Algo me diz que não vou conseguir virar-me para o lado e cochilar um pouco, porque quando lhe dá para isto logo de manhã, mais vale eu ficar atenta do que fingir que não oiço. 

"Metas!... é assim que te transformas no que és!" 

Diz-me ela como se tivesse descoberto a fórmula da pólvora. Percebo que não tenho mesmo hipótese de cochilar. 

"E tenta não explicar tudo, tim tim por tim tim, exaustivamente! Caramba!"

 Ooooopss, hoje ela vem de chinelo na mão! 

"Tens que,..." 

Ui! desde miúda que eu detesto que me digam "tens que!"... dá-me um brotoeijo na pele que até me sacudo! ...

"Tens que mergulhar na tua motivação. quanto mais profundidade atinges, mais a superfície te fará sentido quando voltares à tona. Vá.... mergulha! Tu consegues!"

 Com alguma irritação, porque detesto acordar com exclamações ao ouvido, fico na dúvida se ela estará a falar a sério. 

A conversa é sempre "levanta-te", "ergue-te", "segue caminho... para a frente e para cima!" e hoje é para baixo? Mergulha?.... preciso de um café.   

Descalça e sonâmbula vou até à cozinha ligar a máquina de café, e agora sim percebo lucidamente que não vou voltar para cama... 

Abro as cortinas, separo-as de uma vez só ... 

Lá fora chove, e enquanto vejo a chuva a bater na vidraça, aconchego o roupão ao peito e descanso o pé direito em cima do peito do pé esquerdo. 

O frio sobe-me até á coluna, mas não tenho tempo de ir buscar as pantufas, porque ela volta a insistir.

"Não penses que eu não te conheço."  

Começo a ficar ligeiramente (e diz ligeiramente com um sarcasmo que me deixa também ligeiramente irritada)  

 "Estou cansada de te ver dividida entre a pressão de te desapegares de algumas coisas (e pisca-me o olho. A sério?!) e o desejo de pegar em cada pensamento e dissecá-lo. Podes e deves mergulhar mais fundo se é isso que precisas, mas por favor para de te deteres a cada detalhe só para depois dizeres a ti própria que danças com os teus demónios, e que estás a arrumar o sótão... haja paciência!"

 Parece que me lê o pensamento, logo ela... que sabe que para mim detalhe é importante e que é nos pequenos detalhes que tantas vezes me sinto ferida, e como que responde ao que eu iría começar a pensar para poder refutar! 

"Ok... calma. Eu entendo que por vezes se evita verdades porque se tem medo que a mesma destrua ilusões." 

Pronto! arrumou comigo. O melhor mesmo é calar e ouvir.

"Pode parecer que é difícil ficares de pé quando entras nesse teu espiral de pensamentos. Desliga a ficha! Tu não és uma pessoa má por quereres e gostares de pensar, mas será que não te podes abrir à tua própria presença e à de todos os teus "Eu´s" passados? Se não o fizeres, bem te aviso que vão aparecer quando menos contares!" 

Será que está a ralhar comigo?! Há qualquer coisa em mim que me faz enfiar a cabeça entre os ombros encolhidos, como se fosse menina malcomportada...

 "Metas! metas...!" 

Mas que metas?!  

Pergunto-me como se tivesse caído na conversa de paraquedas. De paraquedas cai é a resposta dela que mais uma vez me adivinha! 

"Deixo-te um pouco de alimento para o pensamento, não é isso que gostas de dar aos outros?" (Deu-me um pouco do meu remédio...! Xiça!... Quase amargou). 

"Metas! nada de lágrimas, desculpas e falsa esperança. Acorda! delineia metas e trabalha com pessoas que nutrem o mesmo sonho, que se refletem em ti e tu neles, sem descurares quem te é diferente. Está na altura de dares o teu melhor para atingires as tuas metas. Já te esqueceste delas, ou queres que te faça um desenho!?" 

Vejo pelo seu tom que ela própria percebe que o raspanete de hoje está a ser bem áspero... reajusta o tom com um limpar de garganta... Eu... Respiro fundo na tentativa de me recompor, abro a janela, preciso de ar fresco. E está fresco! Bem fresco e capaz de me sacudir a sério com um arrepio. 

Já sei.... hoje saí na rifa! 

A voz, agora já um pouco mais serena, aproveita e beija-me a testa com um pingo de chuva, que vendo-se sozinha se junta a uma única lágrima e percorre-me a bochecha gelada. 

"Tu és preceptiva, cheia de recursos criativos, de língua afiada e refilona... sei, mas também sabes ser eloquente e consegues perceber problemas para depois os resolveres desde a raiz. Pratica humildade para contigo própria, mantem-se centrada, mas curiosa. Não precisas que a sociedade te dê o seu beijo da bênção.
Olha para a meta, e depois então, sim... segue!" 

Com tanta coisa para digerir, decido que a minha única saída é beber outro café. Assumir que a exigência que tenho para comigo mesma faz com que eu finja a mim mesma que "já não quero saber"... - sinto-me confusa e perplexa com este descorrer de pensamentos, volto às palavras de voz...   

Faço o café. 

Hoje preciso mesmo do cheirinho de café quente e uma fatia de pão morno com manteiga gelada a derreter... 

algo tenho que fazer para me dar colo...   

e a planta no parapeito da janela que comprei num dia triste... sorri-me. 

É um Lírio da Paz. 


Ruth Collaço e Voz (Heterónimo) Ventos Sábios

Ruth Colaço: Autora do Texto

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