12 May
12May

"E porque não?"
Oiço eu assim do nada.
"Porque não?!"Como? pergunto.

Ah.... decidiu aparecer ao fim do dia. Finalmente não escolheu a hora matutina... mas sinceramente, ao fim do dia? Não sei se tenho paciência.

"Porque não seres um pouco estranha? Porquê dar sempre nomes às coisas? Solta lá essa mania de identificar e resolver problemas! Tens a irritante tendência de ficares congelada em pensamentos negativos cíclicos! Pensas que essa atitude te vai levar a um relacionamento mais saudável contigo própria? A sério?"

Pronto já vou levar na orelhas outra vez! Já não basta o dia que tive, mais as hérnias a morder-me os ossos, ainda tenho que dar as orelhas ao manifesto! Que venha então... não vale mesmo a pena tentar esquivar-me.

"Solta-te lá um bocadinho! Sê um pouco estranha!"

E eu juro que não consigo mesmo perceber o que ela me quer dizer.

"Não te faças de desentendida!"

Ui, que azia ela traz hoje, penso eu.

"Ah! não entendes? então deixa que eu faço-te um desenho! Nunca ouviste o ditado "primeiro deitas a baixo, depois re_constrois?"

Do fundo do meu inconsciente salta-me a voz do sargento do colégio militar! " First you break it, then you fix it?"... estremeço só de lembrar das paradas ao sol. Mas se aguentei o calor ("take the heat people... take the heat!"), então também aguento mais um sermão. Sentada na minha cadeira de embalar, balanço para trás e para a frente como se o movimento repetitivo me ajudasse a pensar.

"Tu tens resiliência emocional mas também tens uma inquietude e desassossego que me tiram do sério!"

Encolho-me...

"Sê estranha, mas não esquisita. "Ens_tranha-te" (agora deu para inventar palavras e eu que a entenda!) e cede a essa vontade de virar a mesa. Deixa de ver laços onde já não há nós. Por uma vez só, toma consciência que as tuas vivências por vezes ditam a forma como tu te relacionas contigo e com os outros."

A esta altura já percebo um pouco do que vem a seguir. A Voz é como um carrossel, sobe e desce de intensidade e suavidade, e sempre que fala com esta suavidade, a seguir vem bomba. Cerro os dentes e preparo-me, a cadeira já balança tão depressa que se eu não me ponho a pau, sou capaz de levantar voo, ser projectada para a janela à minha frente. Ainda mato a “cusca” da vizinha de susto ao ver-me colada à janela!... rosto achatado contra o vidro. Abrando o ritmo...

"En-estranha-te! Afasta-te! Faz-te estranha... entendes ou não? Tenta ser mais tua amiga e mais estranha para os outros. Não... não te estou a mandar ser egoísta, além do mais não é esse o pensamento ao qual eu te tento induzir (a ti a aos milhares de pessoas com coragem de me ouvir). Pega nos teus sonhos, usa o teu talento a teu favor também, achas que consegues?... e faz a vida florescer de uma vez por todas! Já não vais para nova, sabes...!"

Xiça! agora até me arderam as orelhas! Acertou em cheio e começo a pedir a todos os santos que ela não vá por aí...

"Queres criar a partir das tuas feridas ou a partir da tua Luz?... Só tu o podes escolher e fazer acontecer. Mas só depois de fazeres a escolha...e aí é que está! E não me venhas com a treta de seres Libra... isso não pega! Já não basta estares aí a balançar nessa cadeira (que por acaso é lindíssima, já a tua avó voava assim quando eu conversava com ela... mulher de armas a Angelina!), ainda o queres fazer na vida?"

Ao mencionar o nome da minha avó, sinto que me sobra água nos olhos. Paro de "voar" e retomo o "voo" devagarinho.
Vendo isto, a Voz toma compaixão e decide deixar de me puxar nas orelhas. Vê que finalmente olhei ao meu redor e percebo que o que eu pensava ser um caos (casa, dores, planos, carro, pagamentos, pensamentos, atropelos, família...), é apenas a realidade.
Sábia como ela é, "lê-me" o pensamento, beija-me a testa e diz:

"Não é o caos que aumenta, é a tua visão que expande, filha"

Fecho os olhos e deixo que uma lágrima concorde com o que ela diz....Neste momento sinto-me especialmente frágil... mas percebo que é este o "momentum" que eu preciso para me fazer "estranha".
Abro os olhos... percebo-me sozinha no quarto... mas a Voz deixou um perfume no ar.
Lavanda, cheira a lavanda!
Encosto-me para trás e penso: Hoje vou conseguir dormir bem...
(À conversa com a Voz.)


Ventos Sábios - Ruth Collaço


#curiosidade - Estudos demostraram que cheirar o aroma da lavanda não apenas ajuda a relaxar e estimular o sono, mas também tem efeito na qualidade do sono. As mudanças positivas na química do sangue foram medidas depois de voluntários apenas cheirarem o óleo de lavanda.

Ruth Collaço, a autora deste texto.


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