Estava eu a remoer e remastigar o dia, queixando-me de tudo e todos… há dias assim, em que se pensa que mais valia nem ter saído da cama. No rebuliço já cansado dos pensamentos do dia, sentei-me na mesa do quiosque perto de casa… ainda não me apetecia entrar em casa.
“Pareces um guerreiro que empunha um filamento de esparguete quente, em vez de uma espada!” ...
Pareceu-me ouvir.
E por momentos juro que rocei a fronteira da paranoia… vozes?
Estou a ouvir vozes…?
Olhei à volta e embora as mesas estivessem todas ocupadas e ninguém me dirigisse a palavra, jurei ter a nítida sensação de ter ouvido uma voz que em nada me parecia estranha.
Na tentativa de pedir um café, cruzei a perna e fiz uma festa a um dócil cão branco que já me conhecia… entre nós existe daquelas cumplicidades escondidas… estava à espera de que o dono virasse a cara para enfim receber a pontinha da torrada que eu pedi, só porque gosto de ver aquela farfalhuda cauda a abanar.
Juro que por este animal me lê os pensamentos, e hoje também ele está inquieto…
Por mim, hoje ficava ali entregue à calma que me invade a cada olhar entre nós trocado.
Anjo…
Os Anjos andam sempre por aí…
“Pareces um guerreiro que empunha um filamento de esparguete quente, em vez de uma espada!
Que tal agendares tempo para estares contigo própria como precisas?”
Agora sim, ouvi, ouvi!
E naquele extraordinário turbilhão de movimento de mães e crianças que saem da escola, dos autocarros de hora de ponta que passam, das motos, Ubber´s e afins, percebo que voltou.
Finalmente a Voz voltava a pôr a sua mão no ombro… o meu amigo canino, parou de abanar a cauda e olhou para mim.
Fitou-me com um brilho tal nos olhinhos capaz de me fazer acreditar que também ele escutou o mesmo que eu.
Esperei que as cadeiras fossem ficando desocupadas… esperei.
Sabia, que no meio de tanta correria, não tinha sequer dado espaço ou tempo para que ela me falasse. Procurando um lugar por ali, decidi, tirar os sapatos, por os pés na relva e dirigi-me à velha anciã, testemunha de tantas horas minhas. Depositei todo o meu ser, este que hoje mais parece uma carcaça cansada, na relva, abraçada pela sombra da árvore, encostei o dorso ao seu tronco. Alheia a quem passava, entreguei-me à escuta… esperei que ela chegasse.
“Tenho-te observado, sabes…?”
Claro que eu sabia… deixei-a continuar. Mudou o registo para uma suavidade terna, acompanhado de o mudo sussurrar da brisa que se fez sentir.
A velha carvalha agitou os seus ramos num bailado ligeiro, como se me abrigasse numa calma fresca e verde. Com a ponta dos dedos toquei no solo e pedi a sua autorização para que ali o sagrado me falasse. ….
Hoje sentes que nada controlas, e que apenas derivas perdidas na corrente da vida.
Essa tua crença de que deves e tens que estar sempre apossada do controlo da tua, está a levar-te a aplicar a ética (que tanto prezo… penso para dentro) a uma parte da tua vida apenas.
À parte onde tocas os outros, mas... e tu?
Onde está a ética para contigo?
Quando te comparas com os outros, acabas por te sabotar a ti própria.
Pergunta-te a ti mesma, se estás a dar mais do que recebes…
Agenda tempo para ti…atreve-te! “
Senti um abanão na alma e um aperto no peito.
“Sem mais demoras filha, pois sei-te mais assoberbada do que sequer percebes, peço-te…
Tenta controlar antes esse braço de ferro entre o teu desejo de transformação e o instinto de apego ao passado.
Tens a escolha de te transformares de forma que alinhes quem tu verdadeiramente és e quem tu queres ser…
Os outros… não estão em ti, estão contigo, se te quiserem e se te merecerem. Deixa-os comigo.”
E nisto, a tarde já fugia… o sol que se punha lançou um dos últimos raios no céu, e apontou-me o caminho para casa.
Conversas com a Voz.
Ruth Colaço, a autora do texto