- Dá nome às coisas, e faz uma coisa de cada vez.
Oiço enquanto me retorço debaixo da almofada aquecida sobre a lombar. É que a idade pode até perdoar, agora as maselas da vida... Já são um caso à parte.
O facto é que por estar aqui parada, numa desesperada tentativa de recuperar das dores provocadas pelo nervo ciático entalado, acabei por “fazer tempo” para conversar com ela, que sabendo-me “livre” faz logo questão de me vir fazer companhia.
E eu gosto que ela venha até mim, não pensem que não.
Ainda sem perceber que tinha chegado, oiço-a de novo:
- Um pensamento é só um pensamento, um sentimento é só um sentimento e uma ação, é só uma ação.
Agora tenho a certeza, a Voz decidiu mesmo vir dar um ar de sua graça e eu... tenho que ouvir, pois daqui não posso sair.
Ela sabe que eu não gosto nada de ficar parada e sob o pretexto de me ocupar (o pensamento) percebo que vem com o intuito de se fazer ouvir.
- Eu sei... calma, eu não me demoro, diz-me ela prevendo a minha ansiedade só de pensar que vou ter que ouvir sem poder esquivar-me desta.
- Calma... muito gostas tu de te mexeres depressa, de velocidade e praticalidades, mas pensa...
- Mau, penso eu, quando ela começou a pedir para ter calma a pensar, já sei que vem puxão de orelhas. Acomodo a almofada de forma que não me escorregue das costas, absorvo o calor que alivia a dor, encho o peito de ar ( e de coragem) e preparo-me para “ouvir”.
- Como estava a dizer,... senta-se aos pés da cama, cruza a perna e de olhar penetrante, continua,
- muito gostas tu de deliberadamente tomar decisões sobre coisas sobre as quais nem sempre pensas.
- O quê!?, penso eu ultrajada, o meu olhar em nada esconde o que penso e ela continua sem mesmo antes me deixar argumentar em minha defesa.
- Sim... de que vale a rapidez de resposta se não estiveres convencida da escolha que queres fazer?”
- Lá nisso tens razão, penso para comigo... (mas ainda é cedo para dar o braço a torcer.)
- Tens uma mente mais aberta do que transpareces, sabias?
Bem, agora começo a ficar com vontade de me irritar, ligeiramente... só ligeiramente! A sério que vai usar de reforço positivo para me dar a volta?!
- No entanto, e por gostares de ter sempre a perspetiva o mais alargada possível, deves decidir se “empurras ou puxas”... percebes? Se continuas a lutar pelo que queres e te comprometes ou se paras, pensas e depois decides!
- Caramba... reflito ... esta até estalou!
- Essa tua crença, siiim... creeença quase cisma! (enfatiza), de esconderes os teus pensamentos mais escuros faz com que te foques demais no negativo. Agarra-me essa cabeça e controla esses pensamentos! Não faças esse buraco tão fundo! Parece uma fossa!
Credo!.. nunca me falou assim, devo andar mesmo com pensamentos obtusos e intrusivos! É melhor eu ficar bem atenta, digo para mim e agora já com alguma apreensão, pois raramente ela é tão assertiva (sêca! Queria eu dizer, credo! Mas nem me atrevo a sequer a pensar alto.)
- Não te vou incomodar muitos mais, já sei que me queres ver pelas costas, vou-te deixar ficar com duas palavras “TRABALHO” e “DESAFIO”... duuuaaas, para pensares.!
Até me encolho e já nem o calor da almofada me conforta...
- O teu TRABALHO, até nos voltarmos a encontrar, vai ser perceber a diferença entre identidade social e o teu “EU” privado e criativo. O teu DESAFIO será examinar os factores que te fazem ficar aquém do teu potencial.
Uuuiiiii! Essa de auto-analise dá cabo de mim... sustenho a respiração... pela minha experiência e pelo tom de de voz (da Voz) sei que não fica por aqui.
De dedo indicador empertigado na minha direção (se usasse óculos tê-los-ia na ponta do nariz!), dirige-me as ultimas palavras da tarde.
- Há uma linha muito ténue entre diligencia e auto-critica!
Fecho os olhos, solto a respiração de alivio... e sinto-a sair. Para surpresa minha tem ainda uma “coisita“ para dizer...
Chega à porta, vira-se e diz com um sorriso meio trocista:
“Por ser ultrapassável, nem tudo tem que ser ultrapassado! Agora sim, filha, pensa!”
Ruth Collaço, a autora deste texto.