A brisa da manhã abraça as aquarelas do passado e leva-me até àquela noite!...
.jpg)
Uma noite maravilhosa, mágica, transcendente! Daquelas noites que só na juventude se evaporam...e sobem em gotículas de cristal à constelação mais luminosa dos céus! Sempre que as estrelas cintilam, ungem meu corpo com uma trémula excitação que provoca um calafrio, hoje, inacessível na sua existência.
A casa dormia mergulhada na madeira do soalho. O candeeiro ardia numa torcida embebida numa réstia de petróleo à espera que eu a baixasse para emergir o quarto na escuridão.
Aproximei-me da janela e olhei o céu naquela noite sem luar. Que fascínio! Que mistérios se afundavam em mim, naquelas horas solitárias!
Fechei os olhos e deixei-me levar pelas frestas da portinhola que com sussurros estendiam a cortina na simplicidade das flores que perfumavam meu rosto. Permaneci de pé nos gestos sentidos no pensamento, pulsando num amor traçado no meu destino.
Enamorada, vesti-me de sonhos por ceifar na seara do horizonte da minha mocidade. As sombras da noite abriam a minha cama feita com uma manta de trapos, tecida por dedos que beijavam. Elevei um suspiro, respirado com prazer e suavemente, acariciei as nervuras a ferver de uma folha seca, escrita com o dourado dos meus dias. As palavras latejavam com a tinta da china que as eternizavam para sempre!
Era o meu Diário, aquele livrinho pequenino de capa vermelha que um dia, um daqueles dias que jamais deveriam ter acordado, foi lançado ao fogo e bebido nas cinzas pelas lágrimas que me queimavam a alma.
Segredos da juventude; pedidos de namoro às escondidas; cartas trocadas no interior dos livros; encontros marcados no adro da igreja em pleno dia; sorrisos cruzados numa paixão; enfim, a mais pura virgindade ali esculpida, com os dedos das minhas mãos!
Mas…
Uma relíquia revive em invioláveis lembranças, como uma sinfonia tocada na mais bela e harmoniosa serenata, espalhada pelas teclas do meu corpo numa enxurrada de sensações!
Aconteceu naquela noite mágica!
A noite, em que o céu tinha maior encanto! A noite, em que os Anjos faziam com palhinhas de ouro o berço do Menino Jesus!
Num espaço sem intervalos, mergulham as ondas de uma música, timbrada nas cordas de uma guitarra e chorada na essência daquele jovem que se tinha apaixonado por mim.
Pela calada da noite, aos ventos pôde gritar aquele amor que caminhava lado a lado com ele, pelos caminhos da vida.
Magia! Pura magia!
Noite, não tragas a madrugada. Esconde o sol nesse teu véu de sombras e não deixes que ele abra os olhos que me arrancam deste momento tão sublime que veste a minha pele com abraços e beijos!
É uma serenata, sol, é alguém que canta para mim, aqui, debaixo da minha janela...
Deixa-me ouvir a mais bela declaração de amor que uma rapariga pode ter!...E tu, meu amor, pede à guitarra que toque só para mim...e ao vento que traga tua voz muito baixinho e a afogue nesta minha alma ardente que na chama das horas canta, também para ti...
"Menina que estás dormindo
com olhos cor do luar
abre a tua janela
e deixa meu amor entrar
Se soubesses quanto te amo
e o que diz meu coração
amarrava-te para sempre
ao som desta bela canção..."
Palavras ilusionistas, feiticeiras, quebrado o seu encanto pelos meus pais que num quarto ao lado dormiam!
Dormiam...mas o vento não me tinha ouvido e acordou-os ao som da serenata que tanto chorou na hora da despedida.
O dia acordou com a magia do Natal, mas para mim, aquele Natal foi o mais triste da minha juventude!
-A guerra colonial roubou-me para sempre aquele voz que ficou eternizada nas cordas partidas de uma guitarra.
-As cordas que durante muito tempo, choraram comigo no silêncio das almofadas gastas nos sonetos de tantas horas!
Outros natais vieram.
Outras almofadas ouvem agora os meus segredos, tantas vezes, sufocados na memória de tantos medos.
