A psicomagia é uma terapia do foro psicológico que, mais do que na ciência, entronca na arte para atingir a cura de certos males, traumas ou doenças. Sobretudo no mundo do subconsciente de onde nascem e espraiam os atos poéticos e artísticos.

Sem menoscabo pela informação carreada no artigo Psicomagia – parte 1 - e remetendo para a mesma, o criador da psicomagia foi muito influenciado pela poesia e pela arte: durante a segunda grande guerra os chilenos viviam o trabalho e enfatizavam a arte e a poesia (a poesia e a arte eram sentidas e vividas como se de um jogo de futebol se tratasse). Para os chilenos a poesia era um milagre que ia mudando a visão do mundo. Depois do trabalho mandava o vinho, a poesia e a arte.

O povo chileno cantava a poesia dos seus ilustres artistas e poetas: Pablo Neruda, Nicanor Parra, Diego Rivera e outros artistas do mesmo jaez. A poesia e a arte são a raiz da psicomagia.

Para Jodorowsky a arte tem virtudes terapêuticas e a sua finalidade primeira é curar: falta de consciência, ou consciência limitante, o medo, as proibições e privações, etc …, são a causa de alguns males e de certas doenças.

A técnica psicomágica irradia do princípio de que o inconsciente aceita os atos simbólicos como se estes fossem acontecimentos reais, na certeza de que o ato sagrado (ato mágico) tem a força necessária para alterar o percurso do inconsciente e curar traumas psicológicos. Para o ato Psicomágico, o mestre (terapeuta) ancora-se na especificidade da vida de cada paciente e estuda a sua ÁRVORE GENEALÓGICA (uma conexão entre a arte, a filosofia e a psicoterapia moderna).

O Psicomágico apresenta-se como o conhecedor de uma técnica, um “treinador”, e a sua função é explicar ao doente o significado simbólico de cada ato e a sua finalidade: apela-se à consciência do consultante e expurga-se a superstição para que a realidade se mova de uma nova maneira. A partir daí sucedem coisas inesperadas que devem ser aproveitadas para realizar o que, à partida, parece complexo ou impossível.

Todos podemos ser psicomágicos: depende do culto da “força” e da imaginação criativa de cada um de nós

“Há problemas que o saber não soluciona. Virá um dia em que conseguiremos compreender que a ciência não é mais do que uma espécie de variedade da fantasia, uma singularidade da mesma, com todas as vantagens e perigos que toda a singularidade comporta”– GEORG GRODDECK em El libro del ello.

Para o autor da psicomagia, para analisar as dificuldades de um ser humano é necessário entrar na atmosfera psicológica do seu ambiente familiar, no seu universo psicomental. Entende aquele que a gestação familiar de um ser humano raramente se consolida de forma saudável: as doenças e as neuroses parentais influenciam o desenvolvimento do feto. Se estamos perante um hiperativo que quer fazer tudo depressa, terá este nascido de um parto urgente (realizado em poucos minutos). Se estamos perante uma pessoa receosa, muito calculista e que demora a tomar decisões, terá esse nascido de cesariana. Entende por isso que a forma como se nasce, nem sempre a correta, pode influenciar o ser humano e desvia-lo de si mesmo durante toda a vida. Os maus partos advém grandemente de problemas emocionais dos nossos pais com os nossos avós.

Segundo Alejandro Jodorowsky os problemas transmitem-se de geração em geração: “o embruxado converte-se no embruxador, projetando sobre os seus filhos o que foi projetado sobre ele, a não ser que uma tomada de consciência consiga quebrar o ciclo vicioso”. Sustenta que devemos mergulhar em nós mesmos para diagnosticarmos a parte do ser mal construída, “o horror da não realização”, fazendo saltar o obstáculo genealógico que se levanta diante de nós como uma barreira e que se opõem ao fluxo e refluxo da vida. Nesta barreira encontramos os amargos sedimentos psicológicos do nosso pai e da nossa mãe, dos nossos avós e bisavós”.

Temos de aprender metodicamente a não nos identificarmos com a árvore, interiorizar que não pertencemos ao passado e mergulhar no interior de nós. Cada vez que temos um problema que aparenta ser individual, esse problema tem uma raíz coletiva.

No momento em que nos tornamos conscientes, de uma forma ou de outra, a nossa família começa a evoluir. Não só os vivos, mas também os que já partiram para o mundo desmaterializado: “o passado não é inamovível, muda segundo o nosso ponto de vista”. Se nós consideramos os antepassados “culpados”, mudando a nossa mentalidade podemos olhá-los num prisma diferente.

Qualquer “queda” arrastará toda a família, incluindo nascituros, durante gerações, considera Jodorowsky. Um ligeiro acontecimento entre os mais velhos, para os mais novos pode parecer que dura meses e marca-los para toda a vida. No mesmo sentido, a mãe dá ao filho o nome do avô e este, para satisfazer o laço maternal tentará (sem sucesso) ser igual àquele.

Dou o meu exemplo particular: licenciei-me em direito pela Universidade de Coimbra, nos anos 90, para Gáudio dos meus pais e dos meus avós, sobretudo desses. Mas devia ter cursado Filosofia que era a área do conhecimento que eu amava. Terminado o curso logo enveredei pela política o que foi obstando ao exercício da atividade forense. Contudo, quando “abandonei” a atividade política (por razões que pouco importa escalpelizar), rapidamente me virei para a prática da Advocacia, no intuito de ceder à realização dos meus pais e para dar essa “felicidade” ao meu avô paterno (nessa altura já falecido), sempre sentindo que não será essa a minha realização. Como não há uma sem duas, nem há duas sem três, as minhas filhas estão a iniciar-se na política e pretendem ser advogadas, apesar de saberem o quão difícil e quantas vezes ingrata é essa profissão.

Freud, por exemplo, descobriu a psicanálise devido a um trauma que ele recebeu na infância de algumas atitudes do seu pai, que no entendimento de Freud foi demasiado tolerante ou cobarde em certas situações externas humilhantes para a sua família. Ele foi criativo em cima disso.

A árvore genealógica comporta-se como se fosse um ser vivo

“o inconsciente não é científico é artístico”. A árvore tem um foro interno misterioso. Devemos, por isso, alinhar o nosso subconsciente e penetrar nesse interior como se de um sonho se tratasse, como aconselha Jodorowsky.

Refere este no que tange ao inconsciente: “se entendermos a sua linguagem ele põe-se a trabalhar para nós. Se a família se encontra no nosso interior, ancorada na memória infantil, é a base do nosso inconsciente, então devemos desenvolver cada parente como um arquétipo. É preciso que lhe concedamos o nosso nível de consciência, que o exaltemos, que o imaginemos a alcançar o melhor de si. Tudo o que lhe damos, damo-lo a nós. O que lhe recusamos, recusamo-lo a nós. Devemos fazer com que todos os nossos parentes e antepassados se realizem. Ajuda-los a limpar as emoções, desejos e pensamentos desvirtualizados e desmoralizados”.

E clarifica do seguinte modo: “Não se pode abordar a realidade sem desenvolver a imaginação a partir de muitos ângulos. Normalmente visualizamos tudo segundo os estreitos limites das nossas crenças condicionadas. Da realidade misteriosa, tão vasta e incompreensível, apenas percebemos o que é filtrado através do nosso reduzido ponto de vista. A imaginação ativa é a chave de uma visão ampla e permite encarar a vida a partir de ângulos que não são os nossos, imaginando outros níveis de consciência superiores aos nossos. Esta busca separou-me do meu EU ilusório, fez-me fugir do Chile e impeliu-me a procurar desesperadamente um sentido para a vida”.

Uma árvore é avaliada pelos frutos que dá. Se o fruto não se desenvolve ou se é sempre amargo, ainda que robusta ou majestosa, a árvore é má. Se o fruto é doce, a árvore ainda que torta e velha é considerada boa.

A família (presente e passada) é a árvore. Nós somos o fruto que lhe outorga o seu valor.

Seguem alguns exemplos terapêuticos descritos pelo próprio Jodorowsky:

. “A um professor primário, muito maltratado na infância, que estava acometido a uma tristeza crónica, aconselhei-lhe, entre outras coisas, que aprendesse a equilibrar-se numa corda bamba como fazem os artistas de circo. «impossível!» disse-me «vivo numa pequena aldeia no sul de França. Onde vou encontrar quem me ensine tal coisa?». Insisti para que propusesse fazê-lo. Quando voltou à escola um dos seus alunos contou-lhe que andava a aprender a equilibrar-se em cima da corda com um artista de circo retirado que vivia a poucos quilómetros dali”.

. “Uma mulher, critica literária, que se aproxima dos 50 anos, casada com um professor de filosofia, da mesma idade, mas adolescente perene, telefona-me de Barcelona porque descobriu que o marido tem uma amante de 23 anos”:

«(…) caí numa depressão enorme. E ele não quer renunciar nem a ela nem a mim. O que devo fazer?».

“Vou pedir-te que analises a tua vida como se fosse um sonho. Por que é que sonhas que o teu marido com cinquenta anos tem uma amante com vinte e três?”.

«Oh, recordo que quando tinha precisamente vinte e três anos, tive um caso com um homem de cinquenta! Aquilo durou três anos. Depois abandonei-o para andar com um homem mais jovem.»

“Estás a ver? Estás a viver algo que é semelhante a uma repetição onírica. De certa maneira, sonhaste no lugar da esposa enganada e apercebeste-te de como, quando eras nova, fizeste sofrer a mulher do teu amante. Se aquilo não durou, é muito possível que a aventura do teu filósofo também acabe dentro de um ano, uma vez que sabes que já anda há dois anos com a outra. Depois voltará a chorar para os teus braços”. «Cada dia que passa parece-me um século. Não consigo tolerar esta situação. Sinto-me diminuída, doente de raiva, velha».

“Prescrevi-lhe que fosse a uma loja de aves, que comprasse três canários, um macho (o marido) e duas fêmeas: uma jovem, bonita (a amante) e a outra com mais idade, feia e gorda (ela). Depois devia meter os pássaros numa gaiola e pendura-la no seu escritório, em frente da secretária. Ao fim de dez dias devia regressar à loja de aves e oferecer os canários ao mesmo homem que lhos vendeu. Disse-lhe: «o vendedor de pássaros representará Deus. Quando te sentires bem deves entregar-lhe esse problema infantil, de abandono». Passaram uns dias, ligou-me num estado de comoção:

«O incrível acaba de acontecer: pus os canários juntos, alimentei-os da mesma maneira. Mas, pouco a pouco a fêmea jovem foi engordando, perdendo as penas, imobilizando-se num canto. A outra, a de mais idade, embelezou, emagreceu, trinou com alegria. Mais tarde vim a saber que uma fêmea jovem perece se não for fecundada pelo macho. Hoje, quando me sentei para trabalhar, de repente olhei para a gaiola e nesse preciso momento a canária doente caiu morta. Estou aterrada. Ela representa a minha rival. Sinto que a matei. O que é que faço?».

“A realidade dançou para te reconfortar. Aceita esse dom. Põe a avezinha no fundo de um vaso, enche-o com terra e planta uma roseira. Mantém-na viva o mais que possas em tua casa e vai oferecer o casal restante ao passareiro”. Passado um tempo, a consultante voltou a ligar-me para me dizer que estava encantada com o ato. Há muito tempo que não se sentia tão bem. Tinha voltado a encontrar a alegria de viver. Agora não ligava de todo ao que o marido fizesse”.

"Num curso que dei para médicos e terapeutas, em Sanary, no sul de França, aplicando o conceito primitivo de retirar o mal do corpo, aproximei-me do que vim a chamar Psicoxamanismo, curando em poucos minutos uma mulher que padecia de um tique havia já 40 anos. Constantemente, de dois ou três em Três segundos, abanava a cabeça de um lado parta o outro. Chamei-a diante de uma centena de alunos e comecei a interrogá-la, utilizando um tom de voz amável que rapidamente me converteu, para ela, num arquétipo paternal. Apesar dos seus quarenta e oito anos, tratei-a como uma criança: «Diz-me, minha menina, que idade tens?».

Caiu em transe e respondeu-me com voz infantil: «oito anos.»

Diz-me, pequenina, a quem é que estás a dizer que não com a cabeça o tempo todo?

«Ao padre!»

O que é que esse padre te fez?

«Quando me fui confessar para preparar a minha primeira comunhão, perguntou-me se tinha cometido pecados mortais. Como eu não sabia o que eram pecados mortais respondi-lhe que não. Ele insistiu perguntando-me se me tinha tocado entre as pernas. Eu tinha-o feito sem saber que isso não se podia fazer. Fiquei muito envergonhada e menti-lhe com um determinante “NÃO!”. Ele continuou a insistir e eu continuava a negar. Saí dali e recebi a hóstia sagrada, sentindo-me mentirosa, em estado de pecado mortal, condenada para sempre.»

Jodorowsky reagiu do seguinte modo: “Minha pobre menina, continuaste a negar durante 40 anos. Tens de compreender que esse padre era um doente; que não havia motivo para te culpabilizares: é normal que as crianças investiguem o seu corpo e se toquem, os órgãos sexuais não são a fonte do mal. Vou tirar-te esse inútil “NÃO” da cabeça…,

Numa fita de papel pedi à mulher que escrevesse com um marcador preto, «NÃO!», depois atei-lha na testa. Pedi-lhe que se deitasse de barriga para cima numa mesa e abanei as mãos abertas à volta do corpo dela, como se cortasse laços invisíveis, vociferando: «Desaparece daqui padre estúpido, deixa em paz esta menina inocente! Fora! Fora!» Depois, fingindo que fazia grandes esforços, comecei a arrancar-lhe o papel que tinha na testa com o NÃO! Fingi que era muito difícil. Exclamei: «tem raízes profundas! Empurra! Expulsa-o! Ajuda-me menininha!»

Ela pôs-se a empurrar, gritando de dor. Por fim arranquei a fita de papel triunfalmente. A mulher tapou o rosto com as mãos e explodiu em soluços. Quando levantou a cabeça já não tinha o tique. Disse-lhe que fosse ao jardim, que queimasse aquele NÃO, que apanhasse um pouco das cinzas, que as dissolvesse em mel e que as engolisse. Assim fez. Nunca mais voltou a abanar a cabeça.”

A psicomagia economiza tempo e maximiza a tomada de consciência. Assim como uma doença pode aparecer espontaneamente a sua cura também pode ser rápida. À doença repentina Jodorowsky chama desgraça e á cura imediata chama milagre. No entanto ambas integram a mesma essência: “são formas de linguagem do inconsciente

Com os atos artísticos ou poéticos Jodorowsky coloca em evidência os aspetos imprevisíveis da realidade. Contudo, o ato poético (ato mágico) deve ser construtivo, não plasmando a destruição.

“um haiku japonês proporcionou-nos uma chave: um aluno leva o seu poema ao mestre, onde diz:

Uma borboleta:

Tiro-lhe as asas

Fico com um pimento!


A resposta do mestre foi imediata:

Não, não é assim. Ora ouve:

Um pimento:

Ponho-lhe umas asas.

Fico com uma borboleta!”

Publicado em
10/9/2020
na categoria
Espiritualidade
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António M. Pais Silva

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