A tarde voou num dia de intensa chuva.
O calor que aconchegava a casa, enchia o ar de uma neblina mágica com toques de mistério naquela noite.
A noite do renascimento, em que o céu tinha ganho uma estrela tão brilhante que soprava as densas labaredas da fogueira.

As horas que se seguiam quando o dia terminara, eram polvilhadas de sonhos cheios de canela, amassados nas mãos que palpitavam de emoções.
As bocas das panelas cantavam suspiros que aqueciam o coração.
As pernas férreas dançavam valsas presas nas brasas.
O tronco que ardia, mais parecia uma varinha de condão, ali esquecido por uma fada, ou algum anjo.
Um tronco que iria pôr na mesa de pinho, a mais saborosa ceia de natal.
As crianças brincavam.
Jogavam ao jogo do rapa e gritavam alegremente, sempre que o montinho dos pinhões ia para uma meia de lã ainda por estrear.
- Ganhei, ganhei! Esses pinhões são meus!
Dizia eufórica a Francisca.
- São meus, são meus...tu fizeste batota! Jogaste duas vezes... tinha-te saído o "P"...tinhas que pôr todos os pinhões que ganhaste ...são meus, os pinhões!
Argumentava, zangado o Gonçalo.
Por baixo da mesa, pontapés eram abafados no frenesim dos sorrisos doces das crianças.
Mas, um mais forte, levou a Francisca, a queixar-se:
- Ai, ai...a minha perna! Mãe, avó, o mano bateu-me!
- Então, meninos, o que se passa?
Francisca levantou-se da mesa e apoiou os cotovelos na janela.

A geada espetava-se nas agulhas do grande pinheiro que repousava nas horas lentas.
A água da poça mais parecia um espelho gigante, onde a montanha da lua se tinha escondido.
Lá fora era outro mundo.
Um mundo escuro e frio.
Um mundo solitário, feito de silêncio...um silêncio que rasgava a respiração das ervas mais tenras do monte.
Francisca, viajou... para longe, e entrou num lugar sem casas, sem tetos, sem lareiras...mas com gente, muita gente à espera de um abrigo, uma malga de caldo quente, uma brasa que lhes aquecesse os corações famintos de tudo.

Caminhou lado a lado com outras crianças.. sentiu o medo, a fome, o abandono, o vazio...e chorou, chorou tanto que as lágrimas fizeram soltar os seus cotovelos do peitoril da janela. Sua cabeça caiu desamparada na pedra. Gotas de sangue correram-lhe na testa...
- Minha filha...que aconteceu? Tu adormeceste aqui, à janela! Magoaste-te, meu amor? Deixa curar-te...
- Não, mamã, eu não sinto nenhuma dor...a maior dor, está no meu coração e viaja longe, de braço dado com tantas crianças que eu conheci durante o meu sono!
Crianças que estão lá fora à espera de uma noite de natal...que nunca vai acontecer!...
