A noite já ia alta, quando sai de casa em direção à vila de Castro Daire. Necessitava, com urgência, de um medicamento.
Cheguei e estacionei meu carro, em frente ao jardim.
Reparei numa senhora encostada a um táxi, o único táxi que ocupava a praça. Entrei na farmácia, fui atendida, dei dois dedos de conversa com o meu amigo que me recebeu e com um saquinho despedi-me, num até amanhã.
A senhora permanecia no mesmo lugar.
Não consegui ficar indiferente e meus passos caminharam até ela.
- Boa noite, minha senhora! Aguarda transporte, pelo que vejo...
- Boa noite! Sim, estou à espera do taxista. Não deve demorar. Eu já lhe telefonei.
- Para onde vai a senhora?
-perguntei.
- Eu sou do Outeiro de Pepim.
- Minha senhora, se ainda não tivesse chamado o taxista, eu própria a levaria.
Sinto-a cansada e preocupada!
Nada me custava fazer o desvio!...
- Agradeço, minha senhora, de igual modo, sua boa vontade.
Olhe, já lá vem o senhor do táxi!...
O senhor Salvador, aproximou-se, com um sorriso nos lábios. Um cumprimento e...
- Senhor Salvador, se esta senhora, ainda o não tivesse chamado, eu levá-la-ia a casa. Mas, sendo assim, desejo-lhe uma ótima viagem e até amanhã, se Deus quiser.
- Espere, senhora professora! Leve a senhora consigo.
Eu conheço o drama que ela vive e acredite, que é um prazer que ela vá na sua companhia. Nada me importa! O dinheiro não é tudo na vida e as boas ações devem ser praticadas nos momentos certos.
- Mas o senhor deixou seu espaço, veio apressado, não é justo privar-se do seu ganha pão. A vida está difícil e seu dia poderia não ter sido tão profícuo assim!
- Não se preocupe comigo, professora!
Esta senhora está em primeiro lugar. Bem basta o sofrimento dela!
Estou a par dos dias dolorosos que ela carrega aos ombros.
Vá, professora! Leve a senhora, já que é essa sua vontade.
- Agora sou eu que lhe agradeço sua generosidade, senhor Salvador. Como é confortante ver que ainda há gente humana que não olha ao prejuízo que possa ter, em benefício de outrem! Mais uma vez, muito obrigada e que Deus o recompense nesta vida atribulada.
Abri a porta do meu carro, instalei a senhora e seguimos viagem.
- Como se chama a senhora?
De onde vem a esta hora tão tardia?
- Chamo-me Fátima. Venho do hospital de Tondela, onde tenho meu marido internado. Infelizmente, foi vitima de cinco AVC e as melhoras são poucas. Saí de casa pela manhã e como vê só agora regresso. Perco muitas horas na estrada, a mudar de autocarro até chegar aqui.
De olhar cansado, voz lenta e sofrimento no olhar, levava a meu lado uma pessoa que carregava uma cruz bem pesada nos ombros.
Fiz o tempo parar e conduzi o carro o mais devagar possível.
Assim, a D. Fátima, poderia aliviar suas angústias e desamarrar, um pouco, o laço que lhe prendia as mágoas e secava o pranto. Precisava repartir seus tormentos e eu, nada fiz que outrem não fizesse:
oferecer-lhe meu aconchego.
Contou-me, durante o trajeto, que viveu em Lisboa durante longos anos e se instalou na sua aldeia, relativamente, há pouco tempo. Tão pouco que não conhecia, agora, as tábuas novas do seu berço. Ignorava, que havia uma estrada que ligava sua terra a Mosteirô, ali, mesmo ao ado, localidade da mesma freguesia.
Perplexa fiquei, quando me confidenciou nunca ter ido a Mosteirô, apesar de ouvir dizer que era uma aldeia de grande beleza.
Ouvia falar no Largo da Senhora dos Navegantes, nas festividades do primeiro domingo de agosto, na grande obra que o Rancho lá tem...e com amargura dizia que nunca iria ter o prazer de conhecer, pois a vida pôs-lhe nas mãos a doença do marido que lhe turvava os olhos e lhe fazia sangrar a alma.
Ao chegar a Outeiro de Pepim, senti uma dor profunda.
Ver sair aquela mulher do meu carro, queixar-se dos ossos que já não a ajudam, cresceu em mim, o negrume da noite.
Imaginei-a a abrir a porta de sua casa.
Uma casa vazia de afetos, solitária, remexida na saudade, adormecida na penumbra do olhar... que a esperava na melancolia da escuridão.
Que deserto a iria embrulhar nos lençóis ceifados de calor e contorcidos nas ramagens do corpo?
Ela que tanto ansiava um afago, uma cadeira de amores, uma palavra colorida de gestos, um bordão de amparo e aconchego, iria ficar só, esperando a manhã acordar para enfrentar mais uma montanha tão difícil de escalar.
Olhei-a...até seu corpo trémulo se perder nos meus olhos.
No meu colo caiu uma lágrima e pedi a Deus que a embalasse na Sua Misericórdia e lhe aliviasse o calvário dos seus dias.
Creio que Ele me ouviu e a estas horas altas da noite que já tiraram as mantas ao amanhecer, sinto o respirar suave do seu sono.

No coração que a prende à vida, pulsa a esperança, desflorada num coro triunfal que brilhará no sol que amanhã a vai acordar com harpas que cantem um hino à saúde do seu marido.
Inverti a direção e desfiz os quilómetros que me trouxeram a casa.
Pensei no senhor Salvador.
Ele, sim, merece meu abraço de amizade e onde quer que ele esteja, peço que Deus lhe ilumine sempre o coração para continuar a semear o amor ao próximo!