Foi há muito, muito tempo!
Hoje, pouco sugere o sítio.
Resta, apenas, um montão de pedras sepultadas na terra negra e húmida, da ancestral "Vila" de Bugalhão.

Decorria o ano de 1300.
Povo rijo, curtido pelas águas misturadas com o fumo, via passar os anos nos telhados revirados de colmo.
Naquela tarde, a aparente quietação rasgou-se com as ferraduras dos cavalos que se ouviam nas pedras da calçada.
Grandes nuvens negras cobriam a "Vila".
A ventania gemia ferida na torre da Igreja.
O granizo brilhava nas folhas do xisto como lágrimas geladas.
Tudo se embrulhava, no inverno do dia.

O ladrar do cão soou amedrontado. Escapava-se de um lado para outro, indo refugiar-se num palheiro.
Perto, cada vez mais perto, o tropeçar macio de muitos passos agitava a terra.
Tio Mário, de mãos nos bolsos da samarra, rosto deitado para a frente, adoçado pela frescura da velhice enterrada na juventude, olhou pelo postigo à procura de uma razão, para a agitação do seu rafeiro.
Viu, então, aproximar-se umas quantas pessoas bem diferentes às que estava habituado a ver por ali.
Tio Mário era um homenzinho seco, reservado e taciturno. Havia dias, em que ninguém lhe arrancava uma palavra. Nem mesmo o rafeiro, quando lhe lambia as mãos a mendigar um naco de pão! Ficou um pouco receoso sem saber o que fazer.
-Nada tema, bom homem! Somos de paz e viemos por bem! Acompanhamos o Senhor nosso Rei D. Dinis!

Zeloso, na administração das propriedades régias, anda a percorrer o seu território, para ver se está tudo bem!
-sossegou-o de imediato um elemento da Corte.
-O Rei D. Dinis, por este fim do mundo?
Mas meu Senhor e Rei, eu nada vos posso oferecer! Veja minha humilde casa, onde só abunda o fumo negro a sair pelos buracos das paredes.
O Rei, de olhos risonhos, andar rápido e leve, entrou sem pedir licença, pois um Rei no seu poder absoluto, nunca pede licença, para o que quer que seja!
'Puxou por um banco da cor do luto, sentou-se em frente à lareira onde ardia um grande tronco e fez sinal ao Tio Mário para se sentar a seu lado.
Mirou-o bem mirado, dos pés à cabeça, como quem tenta descobrir algum segredo descoberto na calvície. Afagou-lhe a careca durante largos segundos. Depois...
- Muita neve vai na serra! - disse-lhe, com algum sarcasmo e ironia, o Rei.
-Já Senhor é tempo dela! - respondeu o Tio Mário, com sabedoria.
-Diga-me, você vive aqui sozinho?
-Não, meu Senhor e Rei, vivo aqui com meu pai e meu avô! Meu pai ainda não chegou da lavoira e meu avô anda com o gado no monte.
Fez-se silêncio absoluto.
Como poderia um homem de avançada idade ainda ter pai e avô?
Pensou em voz surdina toda a corte.
-Diga-me, bom homem, que idade tem o seu pai e o seu avô?
-Como poderei responder, se eu já nem a minha idade sei? Foram tantas as luas, tantos os sóis, tanta água correu ali na ribeira, que a tudo perdi o conto!
- Assim sendo, ensine-me o segredo dessa longevidade!
- O segredo é o seguinte: três por dia e a cada vez, três. Sete por noite e uma por mês.
O Rei e sua comitiva olharam-se boquiabertos.
Aquelas palavras encheram a aldeia de mistérios indecifráveis.
Nem a sabedoria do Rei Poeta e Trovador encontrava a solução daquele labirinto de palavras.
Na esperança de ser elucidado, fez uma tentativa.
-Muita boa é sua escola, meu bom homem. Troque tudo isso por miúdos, pois sou um ignorante aos seus olhos.
- Meu Senhor e Rei, três por dia e a cada vez, três, são as três refeições que comemos por dia, acompanhadas, cada uma delas por três copos de vinho. Sete por noite, são as sete horas que dormimos a cada noite.
Aqui, o Tio Mário fez uma demorada pausa.
-Então e uma por mês, bom homem, o que é?
-Essa, meu Senhor e Rei, será o segredo que mantém vivos, durante muitos e muitos anos, os habitantes da "Vila" de Bugalhão.
O Rei foi embora.

Na "Vila" ficou o pó mágico que durante longos anos, enrijeceu os ossos dos habitantes de Bugalhão, levando-os para a cova, depois de muitas luas, muitos sóis e muita água ter corrido na ribeira.
